in loco - cobertura dos festivais
As Horas Vulgares, de Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize (Brasil, 2011)
por Juliano Gomes

Via crúcis

As Horas Vulgares é uma espécie de retrato de uma comunidade em sua existência em ato, em sua manifestação de fato “comunitária”. Um grupo de personagens que só existe, que tem como condição para suas aparições, estarem juntos. Isto é: sem a outra parte, não há nada. Não há passado, futuro, ou qualquer tipo de vida fora desses encontros. A fantasmagoria tecida por Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize é a de aparições que se dão em presença de outras e assim infinitamente. É preciso uma espécie de reflexo, de feedback, um olhar, uma presença pra que o outro exista. Estamos sempre à beira da dissolução, do próximo interminável e tenebroso preto na imagem, onde nunca se sabe se voltaremos a ver algumas daquelas figuras de luz, assim como cada um dessa comunidade se sente em relação a si mesmo. Habitantes da noite, onde todo o escuro é uma ameaça de nada e de tudo que pode aparecer, seu drama é justamente sua existência absolutamente frágil e insignificante para além desses laços que se estabelecem e se quebram momento a momento. E essa fragilidade parece ser a força de seu elo.

Um mérito claro aqui é o de nos dar essa sensação de estar à mercê desse jogo de desaparecimentos sem anúncio. E se nos tornamos um deles, é porque podemos em sua presença fazer uma relação, nos projetarmos ali e assim criar vínculo e espaço comum. É um film esobre estar junto e sobre uma espécie de drama que assombra essa situação que passa de espacial para algo espiritual - no sentido que há um vínculo imaterial, que paira sobre todos ali. Estar junto é também desejar o palpável, é poder tocar, beijar, abraçar, formando um longo inventário (uma longa descrição, um conjunto, e um atestado de morte) de poses, de toques, como um álbum de fotos para ser lembrado, para se envelhecer (se alguém sobreviver, se isso for possível). Há um desespero manso e implacável sobre essas pessoas, e sobre essa cidade, que se torna visível e palpável desde seu primeiro momento, e que não para de se acumular indefinidamente. Tal desejo é a expressão de um drama do não sentir que parece marcar essa geração sem “referência”: é preciso sentir, sofrer, para além da razão, das causas e ou motivos justos.

Nada é justo aqui, tudo é frouxo, desgarrado, desajustado. Serenamente, a cada mudança de plano ou espaço, tudo parece se conectar de maneira um pouco inversa, pelo desencaixe (como no belo diálogo em plano-contraplano entre Lauro e Théo, onde cada um ocupa a extremidade oposta do quadro). O único ajustamento possível é o dos corpos, que não param de se atrair. Não há corpo que não se atraia em As Horas Vulgares. Todo diálogo consegue criar uma espécie de campo de força erótico que atrai os personagens indefinidademente, a cada aproximação, gerando ações variadas em seu inventariar de posições. O filme tem momentos de grande precisão de encenação, de reconfigurações do quadro a partir do enquadramento fixo e da disposição dos personagens em relação à luz, explorando suas sombras, com momentos onde estes seres feitos de luz e noite não cessam de nos “dizer frases”. E, ao mesmo tempo que se encena a atração, há uma espécie de intimidade interrompida, ou mesmo tímida, incipiente, que de algum modo nos afasta daquele universo e nos dificulta a experiência daqueles espaços. Essas figuras são veículos de palavras somadas como pequenos solilóquios de afirmações categóricas, que parecem funcionar mais como força de repulsão e indiferença, entre nós e o filme e entre os próprios personagens.

“Por que as coisas não poderiam ser mais leves?”, pergunta uma das personagens, encontrando ressonância no personagem central Lauro - e de alguma maneira, diante da inexistência de razão ou de traços para o estabelecimento desse mal estar que exala de Lauro e se espalhou por tudo, essa é também nossa pergunta, “por que não deixar estar?”. O filme opta por uma espécie de artificialidade que resulta potente em relação à colocação dos corpos na imagem, mas relativamente inócua como opção de interpretação, pois falta àqueles fantasmas, contraditoriamente, algo que pulse, algum vestígio real desse estado que os acomete – algo ainda mais agravado pelos limites do protagonista Lauro (João Gabriel Vasconcellos), cuja presença deveria irradiar a energia necessária, no seu papel de messias às avessas (as menções a Cristo só reiteram isso) do grupo, mas que tem dificuldades de imprimir, segundo a mise en scène propõe, o drama interno e externo propulsor dessas Horas. Por outro lado, a presença de Théo (Rômulo Braga) quase sempre consegue dar conta de causar uma forte impressão física na imagem e dar densidade ao pequenos conflitos que se desenham.  Nas marcas do rosto de Théo, podemos visualizar esse vivido, esse “além” que amplifica o filme adiante de suas superfícies, ampliando vazios e densidades, ao contrário da maior parte do elenco.

Diante da armação explicitamente religiosa do filme, cujo conflito principal, na figura de Lauro, se inicia e termina numa igreja, em sua luta para “aprender a rezar” – isto é: acreditar, enfim, e se sacrificar por isso – ficamos em um lugar curioso. As Horas Vulgares, em seu caminho de esvaziamento de substância e de matéria, nos mobiliza pelo que ele poderia ser, como para Lauro, em sua proposta de uma metafísica mundana, que de fato leva o tema da amizade a um lugar bastante distinto da celebração pura de um coletivismo vazio. Porém, nos dá muito poucas pistas, indícios ou vestígios para que possamos habitar esse espaço, e seguir a visita guiada por essa noite veloz. Trata-se realmente de experimentar um fracasso, uma impossibilidade, que claramente é marca desse grupo de pessoas e talvez dessa geração da década passada. Mas essa “grande falha” algumas vezes impede o processo que funda e alimenta essas figuras de luz, que é o estabelecimento de alguma empatia entre nosso olhar e elas. Esse processo de sedução, quando interrompido, retarda e entorpece nossa função na relação a partir dessa distância. E se essa foi a solução encontrada por Clara, o afastamento, esta saída implica no perigo do desaparecimento. Este só não se dá, no seu caso, pois sua marca já está deixada, desde o prólogo, e assim, sua imagem parece reverberar por todo filme para desaguar no último plano, após o sacrifício. É, enfim, preciso sangue, de algum tipo ou cor, para fazer nascer uma imagem. Justamente daí emana a força e a fraqueza dessas imagens amorosamente desapaixonadas que a noite não cessa de cortar.

Dezembro de 2011

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