in loco - cobertura dos festivais
49o NYFF – O contexto da diferença
por Fábio Andrade

A princípio, esta cobertura do New York Film Festival tem uma motivação decisivamente contingente: como estava passando uma temporada na cidade quando o festival aconteceu, pedi o credenciamento pela chance não só de ver diversos filmes interessantes em primeira mão (embora nem sempre: Melancolia, de Lars Von Trier, fazia sua pré-estréia no festival quando já saía de cartaz no Brasil), mas também de poder testemunhar pela primeira vez a organização e estrutura de um festival de importância em uma cidade onde uma indústria de cinema – algo tão falado e buscado no Brasil – se faz decisivamente presente, em diversos aspectos. Sobre os filmes – ou melhor, alguns deles – os textos visam dar conta; mas a respeito deste segundo aspecto, alguns detalhes importantes parecem gritar para serem mencionados e transportados ao contexto brasileiro.

Criado em 1963, o NYFF não é o único grande festival internacional da cidade – como é o caso do nosso Festival do Rio, sozinho entre festivais de nichos mais específicos (Curta Cinema, É Tudo Verdade, etc). Para ser mais preciso, ele é o festival de um único grupo – a Film Society do Lincoln Center – concentrando sua programação em cinco salas diferentes (a principal, o Walter Reade Theater, é o da foto abaixo), todas em um único quarteirão do complexo do Lincoln Center. Para ir de um cinema ao outro, basta atravessar a rua. Vinte e sete filmes compõem a mostra principal, que se junta à Views from the Avant Garde (paralela dedicada a filmes de menor perspectiva de circuito, onde estava incluído, por exemplo, Twenty Cigarettes, de James Benning), sessões especiais (filmes de curta-metragem; exibições de aniversário de filmes como A Viagem de Chihiro e O Anjo Exterminador) e uma mostra paralela chamada Masterworks, com sessões de luxo de clássicos como Ben-Hur, A Corrida do Ouro e We Can’t Go Home Again, além de uma retrospectiva seleta de títulos da Nikkatsu. Há, portanto, uma combinação bastante equilibrada de abrangência e critério de seleção, de “novidade” e de história, privilegiando um número menor de filmes e mostras, mas ainda assim oferecendo uma seleção mais farta do que qualquer cinéfilo poderia dar conta.

O mais interessante, porém, é que a credencial de imprensa simples do festival não dá acesso às sessões do próprio festival, ao contrário do que acontece no Festival do Rio ou na Mostra de SP. Ao contrário, os críticos, jornalistas e convidados da indústria – com prováveis exceções de credenciais mais “graúdas” – acompanham um festival praticamente à parte, em cabines diurnas que se estendem ao longo de um mês. Se isso, de certa maneira, limita os títulos disponíveis à imprensa (uma vez que nem todos os filmes têm cabine), a organização dessas sessões compensam em muito essa limitação (que pode ser transposta com uma simples compra de ingresso).

Cinco dias por semana, três ou quatro filmes eram projetados com absoluto rigor (seja em 35mm ou em projeção digital) em sessões quase sempre lotadas, com intervalos cuidadosamente planejados para que os filmes pudessem “assentar” na cabeça (não havia sessões separadas por intervalo menor do que 30 minutos – sempre guarnecidos de café, pães, jornais e revistas – além das providenciais pausas para almoço), seguidas quase sempre de coletivas de imprensa presenciais (A Dangerous Method; O Garoto da Bicicleta; Adeus, Primeiro Amor; A Pele Que Habito; 4:44 – todos com pelo menos três convidados no palco) ou por Skype (caso de Martin Scorsese, que ocupou a tela do cinema por cerca de uma hora após a exibição do filme, que era lançado no mesmo dia na Inglaterra, onde o diretor e equipe estavam). Quando as coletivas não aconteciam, até mesmo os filmes das mostras paralelas eram acompanhados de material para imprensa (no caso de James Benning, por exemplo, uma seleção de bons artigos e entrevistas feitas pela Senses of Cinema e a Cinema Scope). A sensação, portanto, era a de se estar participando de um festival de cinema de fato, dispensando o aparato de gala e tapete vermelho (que o NYFF também tem), mas privilegiando, aos críticos, a exibição dos filmes.

Enquanto os festivais brasileiros sofrem todas as consequências de seu voluntário gigantismo (muitas projeções de péssima qualidade, sessões canceladas, atrasos, competição por ineditismo, cabines pouco abrangentes e muitas vezes de filmes de pouco interesse, atraso nas credenciais, críticos e jornalistas tendo que disputar ingressos com espectadores em geral, etc) em nome de um número de títulos cada vez mais sobre-humano, acompanhar as cabines do NYFF era de uma tranquilidade reveladora e salutar. Naturalmente, o problema não é tanto de tamanho quanto de rigor. É possível cortar todos os excessos dos festivais brasileiros e ainda assim não melhorar em nada as condições de exibição dos filmes e de fruição dos espectadores. Não é, portanto, uma defesa do "ver menos" como se ele fosse, necessariamente, ver melhor. Mas sim de que um festival é feito também de prioridades, e que a impressão do NYFF é a de não comprometer o rigor – não só de curadoria, mas de toda a produção – em nome de uma quantidade maior de filmes, salas de cinema, sessões, dias. E isso tudo parte da percepção absolutamente industrial de que a crítica é parte essencial da cadeia de produção, e é do interesse de todos os envolvidos que ela possa desempenhar seu trabalho da melhor maneira possível.

Esta cobertura, portanto, não tem qualquer pretensão de dar conta de o que foi, de fato, o festival. O festival, na verdade, não foi visto. Ela é um recorte do recorte (as vontades e possibilidades do crítico a partir da seleção oferecida à imprensa), reunindo alguns dos destaques entre os filmes vistos, usando o critério de sempre: aqueles que motivaram às palavras. Alguns destes textos já apareceram na Cinética em coberturas de festivais brasileiros e outros dois estão em nosso Em Cartaz (A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, e O Garota da Bicicleta, dos irmãos Dardenne), mas esse reaproveitamento dos textos talvez diga mais sobre os festivais e as limitações da revista em dar conta deles do que qualquer outra coisa – e não deixa de ser expressivo que a Cinética tenha incluído na cobertura do Festival do Rio este texto sobre 4:44, de Abel Ferrara, filme que acabou não sendo exibido no festival por problemas técnicos. Aqui, esses textos são reenquadrados em seu contexto original. E o contexto, como apontam os parágrafos acima, faz toda a diferença.

Novembro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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