in loco - cobertura dos festivais
4:44
Last Day on Earth, de Abel
Ferrara (EUA, 2011)
por Fábio Andrade
Um
novo fim
Por questões temáticas, e pela
proximidade de lançamento, é inevitável que
4:44 Last Day on Earth levante (como já tem levantado)
paralelos com o Melancolia, de Lars Von Trier. Para constatar
essa proximidade, porém, não é necessário
sequer assistir ao filme de Ferrara, com seu título-sinopse:
como viver o último dia de vida, sabendo que o mundo acabará
às 4:44 da próxima madrugada? Até aí,
ressalva-se, não há nada de realmente novo. Qual
filme de Abel Ferrara já não carregava em si algo
de plenamente apocalíptico? Seja na fragmentação
imagética da fé em Maria, no cabaré
que definha em Go Go Tales, no cerco que fecha incessantemente
em Body Snatchers, ou no paraíso decaído
de Bad Lieutenant, Abel Ferrara vem, há anos,
filmando novas versões de um mundo em decadência,
se desintegrando a cada fotograma. 4:44 talvez seja apenas
o seu filme mais literal sobre um tema que o movimenta desde o
princípio de sua carreira, colocando-nos frente a frente
com o fim. Mas, no cinema de Ferrara, a consciência do fim
sempre foi uma questão de princípio.
Por outro lado, há proximidades insuspeitas, e bastante
palpáveis, entre este novo filme de Abel Ferrara e outros
trabalhos recentes de diretores bem mais próximos dele,
tanto por geografia quanto por geração. Com Road
to Nowhere, de Monte Hellman, Ferrara compartilha a necessidade
de retratar um mundo povoado por toda sorte de virtualidades -
Skype, iPads, interfones com vídeo, monitores dos mais
variados formatos e tamanhos - em uma coleção de
acessórios que chegará justamente como arauto do
fim do mundo (e o papel dado ao telejornalismo no filme é
de saborosíssima ironia). Em dado momento de 4:44,
surge uma fala do Dalai Lama - entre vários outros gurus,
das religiões ou das ciências, que explodem pelo
sem número de telas do apartamento do casal protagonista
- dizendo que o homem parecia ter perdido controle sobre a tecnologia;
a fala, porém, chega ao filme, às personagens e
à história por um monitor de vídeo. Não
há, portanto, um julgamento pessimista ou otimista direto
dessa nova organização do mundo; como em Road
to Nowhere, ela é parte tão integrante das
vidas das pessoas que é necessário passar por ela
- e pelos novos estatutos de relações que elas impõem
- para se conhecer as angústias das personagens.
Mas se no filme de Hellman essa explosão de registros é
orquestrada para a produção de um sentido –
mesmo que esse sentido aponte para sua dimensão de necessária
imprecisão – no filme de Ferrara não parece
haver espaço para nada além do caos. 4:44
acontece todo no limite entre a aceitação e o desespero:
o mundo vai acabar, não há nada que se possa fazer
para evitá-lo, mas essa resignação forçada
não virá sem traumas. É nesse sentido que
o filme se aproxima, por vias bastante curiosas, de A Árvore
da Vida, de Terence Malick. Pois diante do abismo, Ferrara
parece dividir com Malick a intenção de retomar
os temas realmente grandes e nobres da humanidade, mesmo que tão
fora de moda: de onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos
aqui? Qual o sentido da vida? Qual o sentido da arte? Mas enquanto
o filme de Malick vai trabalhar a partir da chave heideggereana
da “origem” – que é em si misteriosa
– o filme de Ferrara parte da concretude inevitável
do fim. Olha-se para frente ou para trás; em ambos os fins,
há apenas a certeza de um intransponível mistério.
Enquanto
Malick afirma a impenetrabilidade inevitável do milagre
de origem, as personagens de 4:44 se dividem entre a
vontade de ver e a de não ver, partidos entre a autonomia
de esperar o fim do mundo com os olhos bem abertos e sóbrios
(sempre uma questão no cinema de Ferrara), ou a de dar
um fim à própria vida antes que o mundo o faça
por você. Diante da fragmentação completa
de crenças e convicções – na imagem,
na palavra, na existência, na permanência –
que anuncia o fim do mundo, o que sobra é uma tentativa
infrutífera de, uma vez que é impossível
organizar o caos, se definir a partir da soma desorganizada de
seus fragmentos. Cisco (Willem Dafoe) mata tempo com a polifonia
religiosa e a tentativa de armazenar o que lhe resta do mundo,
mesmo sabendo que não há legado a se deixar. Ainda
assim, Tina (Natasha Lyonne), protagonista e dupla musa (de Dafoe
e de Ferrara, que lhe reserva ilhas de beleza em um filme bastante
torto e mal ajambrado), aguardará o fim do mundo colocando
tinta e mais tinta sobre uma tela estendida ao chão. Por
que pintar um último quadro se ele desaparecerá
com a humanidade no dia seguinte?
Mas
naquele movimento de cobrir uma camada de tinta com outra, em
algum momento surge uma imagem figurativa, que pode ser compreendida
a partir da soma de todas aquelas camadas. Como no filme de Ferrara,
a imagem – no sentido goetheano do termo, de uma
impressão geral que se espalha pela integridade do corpo
da obra de arte e que só pode ser apreendida de sua totalidade
– do quadro se revela justamente pelo caos, pela necessidade
desesperada de se colocar plano sobre plano para, com isso, se
chegar a uma imagem compreensível. Mas essa imagem –
sintetizada no filme pelo Ouroboros, o animal mitológico
que se devora pelo próprio rabo – não aponta
para lugar algum que não a impenetrabilidade indiferente
do começo e do fim. Nessa dúvida, a trajetória
do personagem se irmana à dos espectadores desse mundo-filme,
pois, como ele, não teremos muito o que fazer a não
ser nos deleitarmos com a brutalidade das experiências,
buscando algo de significativo entre as duas pontas.
Setembro de 2011
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