Moscou, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

O que pode o cinema?

Ou por outra, o que pode a arte? Ou, ainda, o que pode o Homem? Não são outras as perguntas que parece querer nos colocar o mais recente filme de Eduardo Coutinho, Moscou. Título escolhido a dedo, aliás: pois na peça de Anton Tchekov que é uma das estrelas do filme (a peça, mas também o gênio de Tchekov), o nome da capital russa significa simultaneamente uma memória não mais presente e um desejo ainda não realizado. Em suma, algo de inefável, aquilo a que todos aspiram (o futuro) ou a que se agarram (o passado), mas que não ali está, naquele momento em que se fala/vive. Moscou, a cidade ou a palavra, é, portanto, antes de tudo uma ausência e uma impossibilidade – e é dessas duas, afinal do que trata Moscou, o filme. Ausência e impossibilidade estas que, no fundo, alimentam a pergunta que, independente dos mais diferentes pontos de partida, é a mesma que move todos os filmes recentes de Coutinho: o que, afinal de contas, pode documentar uma câmera que filma uma pessoa que fala?

É justo falar-se de Moscou a partir da perspectiva dos sete filmes que Coutinho realizou nos últimos dez anos, porque é fato que o projeto claramente surge do imbricamento entre duas faces que o diretor revelava nestes filmes. De um lado, o desejo constante de desafiar os limites de seu próprio cinema, propondo agora um filme que, afinal, não se sabe ao certo sobre o que seria na saída, nem como seria feito (algo que fica claro na cena da conversa em que Coutinho e Enrique Diaz apresentam o projeto ao grupo de atores). Do outro lado, o resultado claro de um processo de depuração do desejo de investigar, mais e mais, este mistério que é o poder do ser humano se identificar com o outro pelo (nada) simples processo do narrar – não importando muito afinal, se o que se narra é algo vivido ou inventado, encenado ou natural, justamente porque, ao fim e ao cabo, estas palavras não têm qualquer sentido enquanto oposições.

Coutinho conta, para fazer seu filme, com encontro fortuito absolutamente feliz: o do seu cinema em seu atual momento com o teatro de Enrique Diaz (foto) – diretor que, como vemos no filme, não foi escolhido por Coutinho e sim indicado pelo Grupo Galpão. Sim, porque nos últimos trabalhos realizados com sua companhia teatral (a Cia. dos Atores), Diaz pegava personagens de alguns dos mais consagrados dramaturgos (Shakespeare em Ensaio.Hamlet; Tchekov em A Gaivota), e tentava desmontá-los junto com seus atores, como quem procura dentro daquelas peças/personagens/pessoas algum segredo original que explique o fenômeno de sua própria existência – mas também de sua comunicação com as pessoas através dos séculos. Na mão contrária, ele estava traçando portanto um caminho paralelo ao de Coutinho, que partindo de “personagens reais” vinha tentando cada vez mais tentar desmontá-las como tal, como que para descobrir de seu lado também algum segredo original da comunicação.

Deste encontro, nasce Moscou, que nada mais é do que uma hora e vinte de exploração desta mesma questão: de que forma se dá essa mágica que torna a comunicação, a identificação, o narrar, a arte possíveis? Numa série de cenas quase independentes umas das outras, Coutinho (e Diaz, é muito importante não deixar de pensar no filme como o produto desta parceria) exploram variação após variação deste mesmo mistério. Ora pegam falas escritas por Tchekov lidas por atores interpretando personagens, ora pegam atores falando de sua própria experiência, ora intercambiam atores entre personagens, ora intercambiam personagens entre atores, ora experiências vividas por uns atores para os outros e assim sucessivamente. Todas as possibilidades da análise combinatória destes elementos são tentadas, enquanto vão sendo derrubados todos os limites entre memória e invenção (onde o uso das fotografias é particularmente desconcertante), construção e espontaneidade (e aqui é importante dizer que Moscou também é um poema sobre a arte misteriosa do ator – e seu labor, documentado com bastante atenção a sua existência como tal).

Por todos os sentidos, a escolha de uma peça de Anton Tchekov é preciosa para a investigação que Coutinho e Diaz dispendem, porque seu teatro parece especialmente apto a este exercício de decomposição. Afinal, o mistério da arte de Tchekov é justamente este das fronteiras indistintas entre o comum e o incomum. Tão centrada em seu local e tempo (a Rússia da virada do século 19 para o 20), tão desprovida de grandes intrigas, ao mesmo tempo transcende totalmente tempo e espaço e engaja o espectador num mundo que ele reconhece como seu. No entanto, ao mesmo tempo em que o espectador consegue sentir por personagens tão distantes dele uma completa empatia (a partilha de algo em comum), estes mesmos personagens ali, existindo num mesmo espaço e tempo entre si, vivem o drama da constatação de uma solidão intransponível (o incomum que os separa, lembrando-os sempre que cada ser é um mundo).

Voltamos então àquele que é o autêntico mistério da arte (e, por que não, da existência): o mistério do encontro entre duas subjetividades (artista-receptor), este momento que é e será sempre sublime – mesmo que sabidamente fugaz no meio de um desencontro muito maior e inescapável. A constatação desta fugacidade como ponto de chegada, como desejo irrealizável de um lugar onde alteridade pudesse tornar-se identidade, desta Moscou a que todos vivemos presos portanto não desanima Eduardo Coutinho – como antes não desanimou Anton Tchekov ou Roberto Carlos, outro poeta do desencontro no encontro (e que, não por acaso, tem música cantada no processo dos atores). Quando sabemos que Coutinho enfrentou uma séria doença logo antes e durante a realização de Moscou, o filme ganha mais significado como uma aposta ou uma afirmação de que a arte, quanto mais sabedora da sua limitação (ou, sendo radicais, inutilidade), mais útil e ilimitada pode ser. Pois sabe que conseguir o encontro entre um e o outro (artista e espectador) é o resultado de um milagre tal que, independente do fato do momento exato deste encontro estar fadado a sumir segundos depois de ter acontecido, isso não o tornará menos real – como é a experiência de assistir Moscou.

Abril de 2009

Leia ainda sobre Moscou, na Cinética:
Abrindo o jogo
por Cléber Eduardo

No escuro
por Fábio Andrade


Do inacabamento ao filme que não acabou
por Ilana Feldman


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta