ensaios - especial moscou
Abrindo o jogo
por Cléber Eduardo

Eduardo Coutinho é o cineasta brasileiro mais importante do momento (anos 00). Não o cineasta mais popular (José Padilha, Daniel Filho), nem de maior prestígio internacional (Walter Salles, Fernando Meirelles), tampouco o de visualidade mais “habilidosa”, que seria colocada em evidência de formas mais “evidentes”, seja com efeito de rigor nessa evidenciação (Julio Bressane, Carlos Reichenbach, Claudio Assis), seja com efeito de aleatoriedade nessa demonstração de habilidade (Beto Brant, Karim Ainouz, José Eduardo Belmonte). A importância de Coutinho é de outra ordem. Não tem a ver com popularidade interna, prestígio externo ou com características visuais de mãos erguidas (como proposta ou percepção). Tem a ver com valor estético atribuído, pela crítica e pelos colegas, a seus filmes nos últimos 10 anos.

Embora sua obra prima, Cabra Marcado para Morrer, seja de outros momentos históricos (1964 e 1984), o do golpe e o da anistia, Coutinho era História no fim dos 90, quando, com Santo Forte, voltou a se instalar na comissão de frente do cinema brasileiro, menos porque esse filme fosse um salto em relação aos trabalhos anteriores na mesma década (Duas Semanas no Morro, Boca do Lixo), mais porque o método Coutinho voltava às salas de exibição comercial. A importância de Coutinho é para além dos filmes, da atribuição de valor estéticos a eles, da defesa quase a priori de muitos críticos. É uma importância quase inatacável, inquestionável, expressa em influência, na mobilização de reflexões, na transformação de filmes em objetos de estudos, em referência/paradigma, não porque esses filmes sejam a cara do documentário contemporâneo brasileiro, mas porque têm uma cara própria na qual parte do documentário brasileiro se molda, seja para copiar ou adaptar, seja para se afastar na retórica e na prática. Essa aparente quase unanimidade, que encontra questionamentos em raros críticos dentro e fora do ambiente acadêmico e que só é colocada em termos menos superlativos pelos colegas diretores aos sussurros, planta os riscos de toda unanimidade. A legitimação tende a existir antes dos filmes, e os filmes são vistos como confirmações da legitimação pré-determinada.

Coutinho tornou-se um modelo, pode-se afirmar sem muitos riscos, mas com problematizações. Se é modelo para outros documentaristas, o cineasta não se contenta com seus métodos, que estão em movimento, não em repetição. Não há modelo, portanto, mas nortes. Algo permanece, algo se expande, algo se dispersa, algo se contém. Coutinho está sempre partindo de algum lugar, onde havia chegado em algum filme anterior, e tenta chegar em algum outro, onde ainda não havia ido. Há um conhecimento – seus filmes anteriores – e uma procura (os novos filmes). Qualquer espectador pode identificar nos filmes do cineasta desde 1999 uma dinâmica centrada no ponto de escuta e na pergunta direta, seca e curta diante de pessoas anônimas, que saem da pré-categoria de comuns ao se tornarem incomuns diante da câmera e de Coutinho. Extraordinário no ordinário. A câmera e o diretor vão ouvir pessoas boas de narração nos lugares onde vivem. Não importa se mentem, se têm uma pauta determinada (Santo Forte, Babilônia 2000, Peões), ou se a pauta é de improviso, estímulo para divagações (Edificio Master, O Fim e O Princípio). Importa que, em quaisquer das provocações, não há linha reta. A narração de quem o diretor ouve vai para muitos lados. Há sempre uma delimitação qualquer: de espaço, tempo, perguntas, assuntos, mas sempre escapa-se da delimitação.

Em Jogo de Cena, não se vai à casa das pessoas, mas ao teatro. A narração pura, sem pré-significações (as casas). Pois ele volta ao teatro, agora com atores, apenas atores, não atores e modelos humanos. Moscou é essa convivência de lugares já conhecidos com a descoberta de lugares novos.  Algo se mantém, algo se expande, algo se dispersa. Uma novidade surge disso, ao menos na obra de Coutinho. Se na primeira frase desse texto o diretor e documentarista foi tratado por cineasta, é porque o termo é originalmente uma classificação estrita e restrita, que, segundo o crítico francês Louis Deluc, deve ser empregada apenas a quem tenha pensamento sobre e na realização cinematográfica. Sobre e na: pensamento sobre a prática e prática do pensamento.

Dispensando as hierarquias de mérito, há hoje, nos últimos poucos anos no Brasil, um reduzido grupo de cineastas, que, como Coutinho, pode ser definido como tal, segundo a demarcação de Deluc nos anos 20. Um grupo que faz de seus filmes projetos mais amplos da imagem, que pensam a imagem na imagem, que, como Coutinho, trabalha em uma dinâmica de manutenção e alteração, de familiaridade com os elementos e de abertura para outros, que lidam com um método em movimento. Sem querer fazer listas definitivas, pode-se pensar, entre os diretores cujas ações cinematográficas recentes pensam o cinema por dentro do próprio cinema, em Julio Bressane (Cleópatra, A Erva do Rato), Andrea Tonacci (Serras da Desordem), Carlos Reichenbach (Falsa Loira), José Mojica Marins (A Encarnação do Demônio), Carlos Nader (Pan Cinema Permanente), Paula Gaitan (Diário de Sintra e Vida), Kiko Goifman (Filmefobia) e João Moreira Salles (Santiago). Essa lista poderia aceitar Guel Arraes (Romance) e Jorge Furtado (Saneamento Básico), embora, nos dois casos, haja maior investimento nas condições do cinema (em termos de produção e de seu lado mercadoria no tema), sem a mesma equivalência de investimento no olhar para a linguagem.

Por diferentes caminhos, com diferentes disposições e com diferenças enormes de valor, esses diretores transformam os elementos cinematográficos com os quais lidam no próprio motivo dos filmes e eventualmente em seu próprios temas. Não se trata de metalinguagem, necessariamente, nem de reflexividade, se formos tomar a noção e a prática dos anos 60 e 70. Somente em um ou outro (inclusive Arraes e Furtado), há esforço de atualização, em bases bem distintas, dessas operações de ruptura. Sem nada com o que romper, e sem nada para denunciar na linguagem, as metas-operações são domesticadas, sem atentar contra a representação ilusionista, mas, sim, usando as metas operações como condimento. Coutinho tem se encaminhado cada vez com maior consciência e riscos nessa direção, a de uma reflexividade enigma, a de um jogo de espelhos em labirintos, a de um rendimento dramático-narrativo da metalinguagem, a do processo criativo e de realização empregados como matéria prima cinematográfica (e temática), mas, nunca, como em Moscou, essa construção olhou tanto para dentro de si mesma. 

Jogo da linguagem, de invenção, de provocação. Coutinho se transforma em modelador de dispositivo. Propõe as regras e espera as fissuras, as potências, as faíscas e as chamas. É preciso atentar-se para cada proposição e para cada efeito, mas também atentar-se para como essas operações, hoje, sobretudo no Brasil, em tão poucos anos, revelam um interesse às vezes fetichista pelo “processo”, pelo bastidor, pelo making of, pela ambigüidade entre ensaio, simulação e um registro direto em busca do autêntico e do espontâneo, do acidente e do improviso, pela construção, pela desconstrução e pela “verdade de tudo isso”. O espontâneo construído, a construção desmascarada, a procura pela máscara, a revelação do mascaramento. Todos esses lás-e-cás reutilizados como matéria prima narrativa e dramática. Modelar dispositivos de provocação de cenas e de narrativas não é abrir-se ao descontrole diante dos caminhos tomados pelo dispositivo. É, antes, contê-los. Modelá-los. Extrair deles alguma eficiência. Se temos uma explicação sobre os propósitos do processo apresentado por Coutinho ao grupo Galpão, se sabemos da disposição de se ensaiar “As Três Irmãs” por um número determinado de dias (20), se há claramente a menção como conceito criativo da palavra processo e incompleto, se há uma afirmação pela incompletude e pelo descontrole contido nela como combustível de criação, também é preciso colocar em questão como essa operação vivida pelo Galpão é operada pelo filme sob direção de Coutinho.

Porque, se o trabalho de Enrique Diaz com o Galpão e com Tchekov pode conter o incompleto como condição, na preparação e no resultado, Moscou é construído para terminar com o senso de completude seu esquema, chegando a evidenciar esse fechamento com a voz de Coutinho a sumir, mas sem parar de narrar, explicitando que a narração não acaba, mas o filme sim – acaba em fluxo para além dele, um pensamento expresso em uma operação, um conceito, não uma introjeção na linguagem da noção de incompletude. A montagem organiza tudo de tal maneira, de forma tão pensada, tão com controle dos fragmentos, que a incompletude do material teatral é só simbólica, por assim dizer, ou apenas a matéria prima sobre a qual se constrói algo, aos fragmentos, mas com diálogos constantes entre esses fragmentos, mesmo quando eles nos parecem autônomos (os melhores momentos).

Se nos filmes anteriores o pensamento sobre o método era colocado na própria imagem, como meio para se chegar a algo fora do método, em Moscou, dando passo adentro (e não à frente) em relação a Jogo de Cena, o método está mais interessado em si mesmo e em suas possibilidades que em servir de meio para se aproximar de algo de fora dele.  Essa mudança traz dois efeitos. Se antes as relações nos filmes se davam entre o que se dizia nos planos “apertados” e o que motivava essa fala fora dos planos, apartando visualmente os personagens do resto do mundo, mas conectando-os ao mundo por uma verbalização centrífuga, em Moscou há relações entre corpos dentro do mesmo plano – mesmo que, ainda, as falas remetam quase sempre a algo fora do campo visível.

Há também o uso de fotos, a explicitação dos ensaios (que remetem ao texto de Tchecov ao mesmo tempo que os vive em cena), memórias próprias e alheias, ampliando a rede de relações dentro dos planos e dos planos com o que está  fora deles, em uma expansão que gera dispersão – não da atenção, mas das forças cênicas e dramáticas antes mais concentradas. E essa dispersão é, paradoxalmente, vinculada a um olhar para dentro do próprio jogo, que, se ainda mantém no jogo a vida fora do jogo, de maneira menos explícita, ao mesmo tempo parece procurar domá-la como nunca. Nunca um filme de Coutinho teve tanto efeito de racionalização e tantas mediações internas. Nunca houve tanta re-apresentação. Um filme-tartaruga, que, quando enfia a cabeça em seu casco, tem do exterior apenas a memória. E é com a memória (da foto, da infância, do texto, dentro texto), na superfície, que lida Coutinho. Não exatamente com o encontro e o processo.

Abril de 2009

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