in loco - II jornada de cinema silencioso
As sessões e os filmes por
Cléber Eduardo Muitos
dos filmes exibidos nesta II Jornada tiveram sessões com acompanhamentos
musicais, alguns inovadores, intervenções de nosso tempo (os anos 2000) naquele
(os anos 20). Também vimos intervenções maiores, como a narração em Cidade
do Amor (Ai No Machi, Japão, 1928), que fornece informações
de fora da diegese, que nos guiam pelas imagens com dados ausentes da imagem e
das cartelas. Não se trata mais do filme, não mais somente de procedimentos para
estar em quadro: há um resgate de uma cultura, não somente de filmes. Mas, nesse
resgate pressupõe-se algo fundamental: situar nosso tempo nesse processo.Vimos
um encontro entre esses tempos, por exemplo, na sessão de The Big Parade,
de King Vidor (EUA, 1925), em que Carlos Roberto de Souza, da Cinemateca, registrava,
com uma minidv, o entorno do filme (platéia, músicos). O digital na captação e
a luz “na e da” tela. Iniciado o filme, um acompanhamento de sonoridades sugestivas,
mas contemporâneas, geradas por uma tecnologia só possível em nosso tempo, altera
em alguma medida a recepção, mas abre novas frentes de relação. Talvez fosse necessário,
nesses casos, ver com e sem a música, com e sem os sons extra-diegéticos, de modo
a se experimentar a sessão, como experiência de encontro de um grupo com aquelas
imagens e dentro de determinados protocolos, mas também de experimentar os filmes
em si, sem os alicerces perceptivos ofertados pelas sessões. Os
filmes em si. Se há sempre essa ponte entre tempos diante de um filme de outro
momento histórico, a relação se torna complexa quando, em 2008, ou de 2008, experimentamos
algumas imagens pela primeira vez como novidade, mesmo se levando em conta um
repertório de 80 anos de cinema posteriores. Se pensarmos em imagens como as da
vinheta da Jornada, com pouco mais 20 planos de Barro Humano, de Humberto
Mauro, que nos colocam em contato, como informa o letreiro, com as raras imagens
em movimento da atriz egípsia Ena Vil, podemos ver uma novidade já em estado de
fantasmagoria. Eva escapa de encarar nosso olhar, olha caído ou buscando pontos
de fuga nas laterais do quadro, mas em dois momentos nos encara e estabelece uma
relação, pois seus olhos se dirigem aos nossos olhares, de maneira intensa e compenetrada.
Barro Humano não existe mais, mas essas imagens, ao serem redispostas por
Eugenio Puppo, diretor e montador da vinheta, estendem-se para além da morte.
É como se Eva, naquela vinheta inspirada, voltasse das tumbas para mais alguns
momentos de vida. Momentos de possessão. Emoções diferentes.
A proporcionada por Solidão (Lonesome, EUA, 1928), por exemplo,
vem da pertinência dos trechos falados, que, ao contrário do que afirmam seus
críticos, são momentos de pura poesia, como analisado em outro texto em Cinética. Mas a poesia
em sentido mais explícito, claro, está nos momentos iluminados das noturnas. Vemos
como a inventividade do primeiro cinema ainda não foi abandonada, mais de 10 anos
após a estréia de Griffith em longa metragem, e continua presente mesmo em um
filme de Hollywood, produção da Universal. Já
a emoção de The Big Parade, também analisado em texto
específico, vem de várias fontes: de uma interpretação magistral nas sutilezas
faciais de John Gilbert, no investimento na duração nas seqüências no front, de
uma visualização da experiência da guerra a semear historicamente as imagens de
Samuel Fuller (As Baionetas Caladas) e Amos Gitai (Kippur),
da superioridade da solidariedade entre amigos de distintas origens sociais em
relação e o plano geral no campo com um ponto ao fundo e no alto, mancando, que
sabemos quem é e o que está fazendo ali. Há um cardápio
de procedimentos que, somados e organizados, nos ofertam uma vista sobre os anos
20? Todos os procedimentos mostrados nos filmes exibidos são procedimentos aos
quais se recorreu nos anos 20, portanto, são contemporâneos dos anos 20 e podem
ser vistos como parte de suas práticas, assim como de seus contextos e de suas
relações com a fase anterior (os anos 10, os anos 1900), mas não se pode arriscar
a pensar uma visão do conjunto, porque, como se viu, o conjunto é bastante específico
em cada uma das suas partes. A maioria dos filmes exibidos
na Jornada é do fim dos anos 20, momento de transição para o falado, quando
alguns cineastas já estão matraqueando por meio das cartelas, em filmes onde se
fala mesmo se não escutamos, enquanto outros cineastas militam contra o retrocesso
representado pelas palavras, dentro de uma cena cultural e estética inicialmente
comandada por Louis Delluc e Riccioto Canuto no começo da década, antes da formação
de um grupo também constituído por Jean Epstein, Germaine Dulac, Abel Gance e
outros artistas. São esses artistas e são os filmes desses artistas que, dentro
da briga pelo específico cinematográfico, pela fotogenia, pelo cinema puro ou
ao menos centrado na visualidade, e não na intriga, que são os contemporâneos
dos filmes mostrados na Jornada. São o extracampo de muitas das imagens projetadas. Agosto
de 2008
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