ensaios
Hou Hsiao-hsien: entre trens e motos
por Fábio Andrade
No caso de Hou Hsiao-hsien, a oportunidade
de ver seus filmes em conjunto se mostra valiosíssima para
que o espectador possa realizar com sua obra um procedimento que
é essencial ao seu próprio cinema: observar as reações
e variações dos filmes e do olhar do artista à
passagem do tempo. Afinal, no que se centra o cinema de Hou Hsiao-hsien
senão justamente nessa observação, construída,
propiciada e potencializada pelos próprios filmes? Os filmes
de Hou são, em sua camada mais superficial (e em nada menos
profunda), um registro da incisão do tempo sobre as coisas,
as personagens, as cidades, a luz, a própria história.
Tudo é inscrito na duração do tempo, pois
só assim essas transformações se fazem realmente
notáveis. Pode-se argumentar que isso é de fato
uma característica do cinema, e que todo filme é
também um registro do mundo ao longo de uma duração;
poucos cineastas, porém, se dedicaram tanto a potencializar
essa vocação tanto quanto Hou Hsiao-hsien.
Como
referência para uma leitura histórica, dois filmes
apresentam planos praticamente idênticos: em Poeira
ao Vento e em Adeus ao Sul (foto), Hou Hsiao-hsien
filma "subjetivas" de trens que adentram e irrompem
a escuridão de túneis. A tela negra - o pré-fílmico
- é contaminada por uma pequena mancha verde, que vai se
expandindo e expandindo até tomar toda a tela, cobrindo
o negro com a vegetação e a claridade que vem das
profundezas do além-tela em direção ao espectador.
Além de serem duas das obras-primas de Hou, Poeira
ao Vento e Adeus ao Sul são marcados por
esses planos gêmeos, que servem como âncora para uma
possível leitura histórica da carreira do diretor.
Pois a despeito da semelhança dos planos, a presença
deles em ambos os filmes grifa uma transformação
clara no sentido que eles carregam em ambos os filmes - ou, mais
exatamente, do sentido que se transforma entre um filme e o outro.
Poeira ao Vento é, de certa forma, o acabamento
(no sentido de esmero pela perfeição, e não
de esgotamento) de uma relação do cinema com a história
que Hou Hsiao-hsien vinha aprimorando ao menos desde Os Garotos
de Fengkuei, e que estaria presente ainda em filmes como
A Cidade das Tristezas. Já Adeus ao Sul
surge em sua carreira como a possibilidade de saída de
um esgotamento desse cinema anterior, uma crise que já
se fazia evidente em Bons Homens, Boas Mulheres, filme
de transição para o qual Adeus ao Sul aparece
como uma espécie de antídoto. Adeus ao Sul
é, portanto, o rompimento com certas amarras dos domínios
dos filmes anteriores, e a mola propulsora que impulsionará
definitivamente seus filmes seguintes.
Em
ambos os casos, há o trem, um dos objetos constantes do
cinema de Hou. Como destaca Francis Vogner dos Reis no
catálogo da mostra, o trem aparece no cinema desde
sempre como uma metáfora, por vezes para a História,
e mais frequentemente para o próprio cinema. Além
de serem, ambos, filhos de um mesmo espírito (a máquina
a vapor; a revolução industrial; a vocação
científica do cinema em observar e esquartejar os movimentos
dos animais para construir máquinas que o reproduzam, como
faz o trem), o trem é também um dos primeiros exemplos
de um enquadramento sobre imagens em rápido movimento –
no caso, as janelas do próprio trem. Mas enquanto Poeira
ao Vento (foto) começa com o tal plano subjetivo,
para em seguida filmar os protagonistas dentro do trem, Adeus
ao Sul já começa ao lado de seus protagonistas,
dentro do trem. O movimento da máquina é sentido
apenas pela vibração dos trilhos na banda sonora,
e só no plano seguinte teremos um ponto de vista do trem
(neste momento, contrário, apontando para tudo que ele
deixa para trás).
A inversão de montagem é mínima, mas seu
efeito é devastador: Poeira ao Vento, como muitos
dos filmes da primeira fase da carreira de Hou, são regidos
por uma espécie de "forma maior" - concentrando-se
em personagens que, de alguma forma, ajudem na compreensão
da História; Adeus ao Sul, ao contrário,
se atira em um tempo histórico para se embrenhar nas curvas
da subjetividade de cada um daqueles personagens. Mesmo em filmes
seguintes que assumem a História como motor, o eixo a partir
daqui será sempre o das personagens - não à
toa, os tempos mudam, mas o casal de Three Times é
sempre o mesmo. O cinema de Hou abandona, portanto, uma linearidade
inevitável à própria historiografia, e se
dedica principalmente às modulações internas
de cada cena, perdendo o caráter finalista da construção
narrativa. Usando os termos de Walter Benjamin em "O Narrador",
é como se Hou Hsiao-hsien passasse da crônica (forma
de narrativa que seleciona episódios para "representá-los
como modelos da história do mundo") para o romance
(forma que teria como centro a condensação do "sentido
da vida").
Não
é por menos, portanto, que Adeus ao Sul seja lembrado
principalmente por seu já antológico passeio de
motos nas montanhas. Pois o filme faz, em certa medida, justamente
a transição do cinema de trens para o cinema de
motos. A partir deste momento, seus trabalhos deixam de delimitar
trajetórias teleológicas, uma "moral da história"
(termos novamente benjamineanos) que depende de uma partida
e de um destino específicos, e passam a se dedicar à
flutuação interna do próprio passeio, do
movimento em seu próprio gozo.
Afinal, o que faz Adeus ao Sul além de frustrar
todas as possibilidades narrativas que o próprio filme
suscita? Pouco importa se um esquema da venda de porcos foi ou
não concretizado; importa que ele motivou um movimento,
obrigou que suas personagens saíssem de seu lugar, e é
justamente essa flutuação que é capaz de
dar conta desse novo estado de mundo. Ao longo do filme, é
como se Hou chamasse constantemente à atenção
a desimportância desses desfechos. Não à toa,
o filme não termina: pára, atolado em seu próprio
acidente, impossibilitado de continuar em movimento - e lembremos
que, para Walter Benjamin, uma das características inexoráveis
do romance é justamente a intransponibilidade de seu fim.
A partir de Adeus ao Sul, o cinema
de Hou Hsiao-hsien será invadido definitivamente por imagens
dessa pulsação, seja nos passeios de carro de Vicky
e Jack em Millennium Mambo, nas voltas de moto da terceira
parte de Three Times, ou no vôo alegre e sem rumo
do balão em A Viagem do Balão Vermelho. Isso
não tira de seus filmes uma dimensão histórica
- assim como as ondulações dos momentos sempre estiveram
lá, apenas não com o mesmo destaque - mas a inversão
de polaridades de uma "forma maior" para uma "forma
menor" parece mais perceptível na ressignificação
do trem nos filmes posteriores.
Essa mudança fica especialmente clara em Café
Lumière: o trem existe enquanto tal, mas Hou Hsiao-hsien
se interessará principalmente pelas várias maneiras
de cada pessoa se relacionar com ele. O trem (a história,
o cinema) pode ser visto como meio de transporte, mas também
como o sangue que circula nas veias da cidade, no brilhante plano
final, ou ainda como matéria bruta de som, imagem e experiência
- como faz a personagem de Asano Tadanobu, gravando os ruídos
dos trilhos e das estações, e dando novo sentido gráfico
ao objeto em um desenho no computador (foto). De Poeira ao Vento
para Adeus ao Sul, os trens mudam com o cinema: de onde
viemos e para onde vamos é algo insignificante; o que importa
de fato é a plenitude da experiência individual de
se estar em um trem, em um vagão, em um tempo, em um plano.
Junho de 2011
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