ensaios
Tempo de Viver e Tempo de Morrer
(Tong nien wang shi),
de Hou Hsiao-hsien (Taiwan, 1986)
por Francis Vogner dos Reis
Duas
das imagens mais comuns em uma parcela dos filmes de Hou Hsiao-hsien
são um relógio de ponteiro e plataformas de estação
de trem. Ambas sugerem espera, tempo e movimento como condições
intrínsecas uma à outra. Não só os
filmes de Hou, mas também o cinema tem obsessão
pela significação dessas imagens desde sempre, a
estação de trem é um espaço cinematográfico
quase metafórico, de Lumière a De Palma. O trem
como metáfora foi inclusive o estopim da briga entre Truffaut
e Godard. Truffaut tinha uma concepção poética
(o cinema é como um trem que vaga na noite), Godard, histórica
(quem ocupa esse trem? A que classe os passageiros pertencem?
Para onde ele vai?). O que importa para Hou Hsiao-hsien é
entender o "tempo" que as imagens referentes ao trem
e ao relógio representam.
Sua obra-prima de 1985, Tempo de Viver e Tempo de Morrer,
confronta essa questão que diz respeito ao poético
- a beleza que ele pode extrair de suas imagens - e ao histórico
- o olhar que essas imagens imprimem sobre as pessoas, sua época
e seus lugares. Por mais belos que sejam os seus filmes anteriores,
Tempo de Viver e Tempo de Morrer é o seu primeiro
filme que realmente faz saltar os olhos. É um cinema arejado
e generoso que tornaria Hou Hsiao-hsien na década seguinte
o maior cineasta em atividade no extremo oriente. Este é
um filme aberto ao mundo e por isso (como em John Ford) nos dá
a impressão de que há lugar nele para todas as experiências
humanas fundamentais. Porém, por outro lado, suas imagens
são fechadas como se pudéssemos somente observar
aqueles personagens e aquele mundo, e mesmo assim não saber
tudo sobre eles. Tudo que é simples e até corriqueiro
se reveste de um mistério intransponível. Por isso,
o tempo (o mensurável, porém incontrolável)
e a morte (inomínável e inevitável). Essa
natureza paradoxal é questão e motivo em Tempo
de Viver e Tempo de Morrer.
O
filme foi baseado nas memórias do diretor e na própria
experiência de sua família, que nos anos 1940 abandonou
a China para viver em Taiwan. Seu alter ego é A-ha, um
dos membros mais jovens da família. É por meio dele
(e do seu entorno) que o diretor desenha a trajetória da
família. O filme se divide entre a infância
e a adolescência de A-ha, marcada pela morte dos três
membros mais velhos da família: o pai, a mãe e a
avó (nessa ordem). A morte dos três personagens mais
velhos não só pontua a passagem do tempo, mas cada
uma encerra um ato. Cada ato do filme revela um mecanismo reverso
do tempo: quanto mais se vive, mais a morte se faz presente. A
avó que procurava proteger o neto A-ha, passa a ser cuidada
por ele e seus irmãos, além de que ela, que pela
lógica do tempo cronológico seria a primeira a morrer,
vê a morte do filho e da nora.
Por causa dessa lógica do tempo que é
importante a imagem do trem e do relógio: como em um relógio,
há um movimento determinista (o relógio não
gira em direção contrária), mas como um trem,
há um deslocamento das coisas e uma mudança sensível
e substancial, mesmo que o trajeto (dos dias, a configuração
do cotidiano) pareça se repetir. O que não quer
dizer que haja uma repetição sistemática
de rituais diários e pequenas ações como
nos filmes de Yasujiro Ozu, mas aqui a repetição
e os "arranjos" cotidianos se dão sob a forma
de uma aparente inércia do estado de coisas. É como
se muita coisa girasse em falso sem resultado efetivo, como a
briga de A-ha e de seus amigos com os garotos de outro bairro
e os costumeiros sumiços da avó. Mas isso não
representa letargia. Nesse universo composto com acuidade de pintor,
a contemplação não existe sem ação,
pois apesar dos aparentes repousos na trajetória dos personagens
(na forma de banalidades e de miséria cotidianas), sempre
há algo em andamento.
Como
o cinema é o único meio de sermos observadores externos,
alheios do tempo, Hou Hsiao-hsien irá se aproveitar dessa
condição como poucas vezes vimos no cinema. Por
exemplo: esse "estado de coisas" do jovem A-ha e de
sua família é observado pelo diretor com distanciamento,
porém sem isenção, ou seja, o exato oposto
que certo cinema contemporâneo da rarefação
o faz. Aqui há uma postura, porém tudo se torna
uma relação de aproximação e de distanciamento
que é determinada pelas variadas distâncias da câmera
(e por seus planos, que parecem belamente desajustados no quadro)
e pela duração das sequências, que nos dão
o essencial desses personagens.
Esse "distanciamento sem isenção"
em certo aspecto é como um quadro impressionista em que
não se misturam as cores, porque elas são concebidas
como "cores puras" - colocadas na tela juntas, porém
não diluídas - para que assim elas se misturem nos
olhos de quem vê durante o processo de formação
da imagem. Daí a semelhança com um quadro impressionista:
afasta-se para se ver melhor a totalidade da imagem representada
pelo quadro, aproxima-se para ver as pinceladas , juntas, formam
a imagem. No cinema de Hou o olhar é a tentativa de entender
a singularidade das coisas e ao mesmo tempo de tentar apreender
algo de sua totalidade.
Nessa lógica, o desafio em Tempo de Viver e Tempo de Morrer é o de vivenciar a experiência que o filme propõe. Não uma experiência sensorial vulgar, siderante, pseudoafetiva e fetichista, mas sim em um partilhamento do olhar sobre as experiências daqueles personagens que existem naquele mundo.
Por isso os três personagens filmados com maior encanto e perplexidade são o pai, a mãe e a avó, justamente os três que falecem durante o filme. Ao mesmo tempo em que acompanhamos o cotidiano e a relação deles com os filhos e os netos — as histórias do passado que contam, o exercício da autoridade que prezam — vemos uma inversão dos papéis, pois os mais novos passam a cuidar dos mais velhos, preparando-os não para a vida (como os pais e os avós fazem com as crianças), mas para a morte.
Aqui a imagem da morte não é a do momento derradeiro (a representação do momento da morte), mas a da consciência da morte, sempre solitária, fora de plano. É fascinante como o diretor filma a reação dos vivos quando da consciência da morte do outro. Na primeira morte o desespero do inesperado (a morte do pai sentado à cadeira de trabalho), na segunda a dor profunda, resultado dos cuidados com a mãe maltratada por um câncer (a morte da mãe, vista do velório), e na terceira uma serenidade na aceitação da fatalidade do tempo (a morte da avó já bem idosa, que tem o corpo limpado pelos vizinhos à vista dos netos).
A beleza não está no sentido que
se é capaz de criar (a dor não tem necessariamente
sentido, mas consequências), porque a morte de qualquer
maneira é sempre brutal e a vida nem sempre é generosa,
mas na maneira como se confronta e se assume o absurdo de existir,
porque entender o tempo é o mesmo que encarar a morte.
E como diz o livro bíblico do Eclesiastes (o título
do filme é uma variação de seus versículos
mais famosos): "Ele (Deus) pôs, além disso,
no seu coração a duração inteira (a
totalidade dos tempos e dos acontecimentos), sem que ninguém
possa compreender a obra divina de um extremo a outro."
Dezembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br |