Fôlego (Soom), de Kim Ki-duk (Coréia do Sul, 2007)
por Paulo Santos Lima

Por um cinema menos ordinário

Estamos, neste Fôlego, diante de um jogo de armar bastante simples, infantil até, no qual uma dona-de-casa traída pelo marido interessa-se por um presidiário condenado à morte. Ele, preso de fato. Ela, fazendo sua “prisão voluntária”, não saindo de sua casa, preocupando-se mais em assistir ao noticiário pela TV e prosseguir com seus dotes artísticos de escultora artesã. Não é irrelevante dizer que ela faz estátuas de anjos, e que um deles tem uma asa incompleta; e que o presidiário tenta se matar com a mesma escova dental que serve para um dos encarcerados desenhar na parede da cela. É aqui que se trava uma comunicação que vai se estendendo até a mulher visitá-lo no lugar e fazer apresentações musicais: ela, com vestido temático, cantando músicas da primavera entre quatro paredes que ela própria forra com o respectivo assunto cantado. Não é fútil dizer que o cara não abre a boca, e ela muito pouco fala com o marido. E nem que este se arrepende e, enquanto a execução do sujeito está próxima, a vida íntima do casal mostra-se em franco reflorestamento. A leitura é mobral mesmo, como bem apontou Eduardo Valente durante a cobertura de Cannes 2007.

Dado bastante crucial, aqui, é o tal silêncio de alguns personagens. A não-voz é, muitas vezes, uma resposta mais forte que a palavra. É assim nos filmes de Michelangelo Antonioni, nos quais o silêncio entre Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em A Noite, por exemplo, se dá porque, realmente, não há muito o que se falar; assim como não podemos esperar que Monica Vitti, andando sozinha numa rua em O Eclipse, desate a falar. Idem para os filmes de Tsai Ming-liang, ainda que, finalmente, desde Adeus Dragon-Inn, os silêncios tenham se tornado cacoetes. Só que Tsai busca significados mais concretos com suas imagens significantes, com seus abajures, melancias e garrafas plásticas. Não só isso, não aprisiona esses signos à mera interpretação. Kim Ki-duk, por sua vez, estrutura seus longas sempre para aludirem a algo externo ao filme, mas bastante interior a quem assiste (dor física e emocional, solidão, amor).

Em Fôlego, um dispositivo e seu respectivo meio são, ironicamente, o que evidenciam a má utilização que seu diretor, Kim Ki-duk, faz desses mesmos aparelhos. Não são poucos os momentos em que aparecem as câmeras de vigilância de um presídio e o monitor pelo qual o diretor da instituição assiste ao que está sendo captado. Há, também, uma TV. O fato é que a freqüência de aparição desses equipamentos torna-os simples meios de fetichização, nada além de um jeito diferente de se filmar uma determinada cena, e não propriamente construir uma imagem “diferente”. Sabemos estar, então, num filme de Kim Ki-duk, que usa seus tableaux simplesmente para fazer “bonito”.

Talvez seja, de fato, mais interessante mencionar o uso do extracampo que esse cineasta coreano faz. Assim como, em A Ilha (2000), não víamos propriamente o interior vaginal da mocinha tirando os anzóis de pesca ali espetados, o que não deixava de causar certa sensação agoniada (ainda que talvez seja a única seqüência sensual no cinema de Kim), agora o rapaz enfia a escova pela garganta e o que fica no plano é o sangue espirrado. Uma escolha hipócrita, como se Kim Ki-duk procurasse o bom gosto, ou o sublime – o que cai por terra quando olhos mais treinados percebem os ambientes domésticos bastante clean, assim como a prisão branca. Não estamos na seara do conceito, porque simplesmente não há relação alguma entre personagens e espaços. O que há, por certo, é algo como bonecos pintados sobre uma tela. O extracampo, assim como as já mencionadas câmeras, os silêncios, enfim, são puramente escolhas de um cineasta – o que faz toda a diferença num filme.

Definitivamente, alguém que usa as estações do ano, como no tenebroso Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera e, agora, neste Fôlego, para ilustrar e fazer quem o assiste pensar e sentir as variações sobre vida, (des)encontro humano e tal, é dono de um projeto de cinema que não rende um alto vôo. É algo que nem mesmo uma apresentação de circo de segunda categoria faz, já que contra o ensaio prévio há a premência do momento, a mise-en-scène no picadeiro, a possibilidade de nossos olhos passearem pelo espaço e escolherem o que de fato importa ver, inclusive a lona furada. Diante dum filme de Kim Ki-duk, sendo ele apresentado numa tela de cinema, a idéia é não haver escapatória para os nossos olhos além de verem esse cinema de cenografia ordinária, com seus filmes cheios de artifícios roubados de outros grandes cinemas para assim ganhar seu rótulo de “filme de arte”. Um cinema que tira o fôlego não só dos pulmões, como dos olhos.

Maio de 2008

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