in loco
Dia 7: Cinema de autor: acredite se quiser
por Eduardo Valente

A essa altura do Festival, fruto muito mais de uma necessidade (a falta de tempo para dedicar um texto a cada um) e circunstância (este clima de Festival onde mais formamos primeiras impressões do que as que duram), ver trabalhos bem distintos em menos de 24 horas e acabamos tendo como efeito um pensamento cruzado. Impressionou-me hoje a diferença clara entre cineastas que constroem, a partir do uso da câmera e som (e da posterior montagem, claro), um universo absolutamente particular – que até remete ao mundo em que vivemos, mas que de fato só pode existir enquanto acompanhamos a duração de seus filmes; e outros que possuem uma relação muito mais subserviente tanto com uma idéia de “realidade ficcional” quanto com uma construção audiovisual toda chupada dos códigos mais banalizados de construção de linguagem do cinema (seja o cinema clássico/comunicativo, seja o cinema “de autor”).

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Go Go Tales, de Abel Ferrara (Itália, 2007) – Fora de competição, meia-noite
The Man From London, de Béla Tarr (Hungria/França/Alemanha, 2007) – Competição

Desnecessário dizer, dado o recente destaque na revista a Mary, que coloco na primeira categoria Abel Ferrara, que neste Go Go Tales realiza um filme que, ao mesmo tempo que bastante leve, revisita e reposiciona todo um cinema que vem construindo há 20 anos – cinema de uma profunda angústia e insanidade, que não faz a menor questão de se esconder por trás da comédia que surge na tela. É um cinema que, ao mesmo tempo que nos faz pensar em cinema (a referência direta sendo o Bookmaker Chinês de Cassavetes – mas o filme também lembra muito, em mais de um sentido, o último Robert Altman, A Última Noite), nos coloca de frente com o ser humano, sem precisar para isso se “render” a um realismo-naturalista – aliás, muito pelo contrário.

Trata-se da história daquela que pode vir a ser a última noite de um go go club nova iorquino (todo filmado em Cinecittá), onde um quase possuído (como vários protagonistas de Ferrara) Willem Dafoe briga para se desvencilhar das pressões de todos os lados (a dona do imóvel que ameaça expulsá-lo, as strippers que ameaçam uma greve, seu irmão rico que paga as contas mas que fechar o lugar), enquanto aposta tudo (literalmente) numa última cartada – um jogo de loteria. O clube se chama Ruby’s Paradise, e mais de uma vez somos lembrados que o que está em jogo no filme é nada menos do que a queda do paraíso. Embora Ferrara deseje, mais que tudo, homenagear os clubes em que passou muito tempo na juventude (e toda sua selva/universo), o filme é também um duro lamento sobre um tempo que passa – e há mais do que uma agulhada em produtores de Hollywood, jovens trabalhadores do mercado financeiro, etc (“people love to see other people fail”, diz um personagem lá pelas tantas).

Assim como no filme de Altman, esta mistura de celebração e funeral é construída por Ferrara com uma câmera que parece planar quase irrealmente pelo espaço interno do clube, muito mais captando pedaços de ação daquela noite do que construindo de fato uma narrativa no sentido clássico. Menos do que aonde as cenas desembocam, nos satisfazemos em fruir os planos, em pegar as pequenas pérolas de trabalho dos atores, em acompanhar momentos de uma beleza crua e quase patética. Neste sentido, nenhum momento é mais forte no filme do que o “show de talentos” do fim da noite, com um porteiro violento recitando Shakespeare e um Matthew Modine afetadíssimo cantando (pessimamente) uma cantoneta com uma viola e um cachorrinho penteado. Um filme que nos maravilha e deprime ao mesmo tempo.

O mesmo pode ser dito, ainda que com muitas diferenças, de The Man From London – filme realizado ao longo de quatro anos pelo húngaro Béla Tarr, cineasta mais conhecido hoje como inspiração forte para a trilogia recente de Van Sant, do que pela sua própria obra (embora o épico de sete horas Satantango tenha causado muita impressão em São Paulo, quando exibido na Mostra). O filme de Tarr é filmado na Espanha, falado em húngaro, baseado na obra do francês Georges Simenon, e tem como protagonistas um ator tcheco e uma inglesa (Tilda Swinton) – só que na verdade ele se passa num só lugar: o mundo de Béla Tarr. Tarr é um daqueles cineastas com uma aproximação tão particular com o cinema, que é impossível não reconhecer o seu mundo ao ver um plano qualquer do filme (embora seja verdade que vários dos seus planos têm mais de seis, sete minutos).

Este mundo de Tarr (um mundo em preto-e-branco, com movimentos de câmera laterais e verticais constantes, atores que trabalham num registro tons acima – ou abaixo – do natural e com um som todo particular, com cada ruído refeito em pós-produção – inclusive dublagem dos atores, e uma música repetitiva que impõe um tom) é, ao mesmo tempo, a grande força e a armadilha do filme. Força porque, ao contrário de alguns aqui já citados neste Festival (Carlos Reygadas ou Andrei Zviaguintsev), este mundo de um formalismo intenso não nos parece imposto pelo diretor aos seus personagens por força de influências cinematográficas externas, mas sim algo que nasce com e a partir de Tarr, um mundo único e todo dele, que preexiste e ultrapassa os personagens, mas onde eles habitam com naturalidade.

No entanto, este mundo, que é de uma beleza hipnótica extrema, parece um tanto sufocado e sufocante neste Man From London, em parte pela sua origem literária (que impõe uma trama bastante distinguível e que é essencial para o filme), e em parte por esta sua “desterritorialidade”. Isso porque, nos filmes anteriores de Tarr (Damnation, Satantango e Werckmeister Harmonies), esta hipnose era muito menos conectada ao ato de seguir o desenrolar de uma determinada narrativa (embora houvesse sim uma trama, esgarçada) e parecia intrinsecamente ligada ao mundo quase rural das pequenas cidades da Hungria que Tarr filmava. Feita esta ressalva, ainda assim Man From London está longe de ser um filme qualquer – e estabelece mais do que tudo um desejo enorme de que o próximo filme dele tenha um trajeto menos acidentado (o produtor deste suicidou-se com dez dias de filmagem, interrompendo a produção quase que permanentemente), e possa chegar logo.

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Auf der Anderen Seite (The Edge of Heaven), de Fatih Akin (Alemanha/Turquia, 2007) – Competição
Soom (Breath), de Kim Ki-Duk (Coréia do Sul, 2007) – Competição

Frente aos reconhecíveis mundos de Ferrara e Tarr, que muito mais do que decalques de estilo são autênticos universos com existência quase palpável e unicamente audiovisual, revelam-se ainda mais diminutos os filmes destes dois “autores de estufa”, que parecem estar sendo criados artificialmente por toda uma economia do “mercado de cineastas”, principalmente nos festivais. Expostos a um microscópio crítico minimamente criterioso, porém, o cinema de Fatih Akin e Kim Ki-Duk revela-se pelo que realmente é: um laboratório esquemático de satisfação de expectativas consensuais, cuja única variante é a origem manipulativa-popular-humanista do primeiro frente ao “cinema de autor exótico” do segundo.

No filme de Fatih Akin, mais do que o melodrama que não ousa dizer seu nome, incomoda mesmo uma arquitetura de emoções desenhada da maneira mais óbvia possível – quando não francamente mal realizada. Em termos de artesanato de filmagem e roteiro, Akin é extremamente atrapalhado, recorrendo sempre às soluções mais fáceis. Impressiona como são mal decupadas as cenas de suposta tensão (as perseguições, por exemplo) e escritas com funcionalidade absurda os diálogos entre os personagens que “revelam” algo sobre a trama. Só para ficarmos no exemplo mais idiótico, ele se utiliza até de um diário (nunca antes posto em cena, claro) para que uma mãe possa melhor compreender as motivações da sua filha morta.

Se a impressão que ficamos é que Akin seria um realizador de terceira grandeza numa linha de produção industrial (se fosse da Globo, não dirigiria as minisséries), por outro lado não chega a surpreender que ele consiga a adesão geral no circuito dos festivais pela sua “temática urgente” (ou seja: relações entre Europa e a África – no caso, Alemanha e Turquia). Esse é seu único ponto, e um para o qual ele se utilizará dos personagens como marionetes ilustrativas – e até aí nada contra, desde que não fosse um filme que, sob o manto de um “naturalismo” de registro, pretendesse tratar de dramas individuais. Só mesmo num cenário onde Iñarritu é considerado um realizador “complexo”, Akin pode receber qualquer atenção mais séria – mas mesmo em relação ao cineasta mexicano é preciso reconhecer que pelo menos ele domina as ferramentas de filmagem e apresenta uma marca forte pessoal com seus roteiros em redemoinho (inúteis, talvez, mas engenhosos ao menos). Os momentos de cruzamento entre os tempos/narrativas no filme de Akin, aliás, são alguns dos piores.

Já Kim Ki-Duk escolhe um caminho diferente, mas aparentemente de igual facilidade, para legitimar seu nome internacionalmente. Ao invés do cinema das “temáticas nobres”, vem com a “forma marcante”, exotizante. Só que é igualmente banal e genérico nos seus efeitos escolhidos, um vampiro do cinema asiático de perfil de destaque (leia-se, principalmente, Tsai Ming-liang). Voltam neste Soom a imposição de uma situação “não-natural” aos personagens (o mutismo), a poesia de terceira (porque, como dizia Tarkovski, de significado óbvio – portanto, não poético) e o visual francamente kitsch (mas não um kitsch assumido como tal, e retrabalhado – como o de, digamos, Almodóvar), onde chega a ser impressionante o momento da cela de prisão com paredes floridas.

Em um caso como outro, o desejo maior é o de se aproveitar da necessidade de um público do cinema do circuito de arte de sentir-se inteligente, sensível, de perceber os grandes temas ou a forma de um filme sendo manipulados, mas sem grandes complexidade – da maneira mais consensual possível, sem criar qualquer estranheza, qualquer sentimento novo, desconforto, incômodo sensorial de qualquer tipo. Sua relação com a recepção do espectador é exatamente a mesma do cinemão comercial mais banal, ou de uma emissão de teledramaturgia, apenas com um verniz de “intelectualidade”. Que consigam a adesão deste público é até natural – agora, que sejam considerados pelos maiores festivais do mundo como “grandes autores”, parece realmente uma constatação bem mais preocupante sobre o estado das coisas no que se refere aos critérios gerais para essa classificação.

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Há uns 6, 7 anos, o comparsa pernambucano Kleber Mendonça estava cobrindo Cannes, e eu no Brasil falando com ele por email. Já era o final do Festival, e quando perguntei como estava indo, ele disse que tinha batido a “Festival fatigue”. Achei (e disse para ele) que era alguma frescura, de um cara que estava no maior festival de cinema do mundo e fazendo charminho. Anos depois, já cobrindo, descobri que realmente ela existe e bate forte neste final: entre as noites mal dormidas, dias mal alimentados e muita correria, nos últimos dias do Festival vai batendo um “banzo” impressionante, uma dificuldade de se concentrar nos filmes e às vezes uma falta de vontade de entrar na sala mesmo. Hoje, por exemplo, de 6 filmes que me programara para ver, acabei vendo só dois (na verdade, fui a três, mas um deles, constatado ser um filme fraco aos dez minutos, serviu como momento de, er, digamos, “reposição das energias”). Pude ainda ir nas coletivas de Béla Tarr e Abel Ferrara, e na apresentação de Limite (embora não tenha tido o fôlego para rever o filme – que soube por outro comparsa, João Cândido, que terminou com cerca de 20% do público inicial, o que acho natural para um filme como a obra de Mário Peixoto, que pede uma adesão e disponibilidade do público que não tem nada a ver com o clima de um fim de Cannes). Tenho aqui programadas seis sessões por dia, de quinta a sábado – mas não faço nenhuma promessa de quantas cumprirei.

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