Volta para parte 2 da entrevista

Ruy e Junior discutem a necessidade de uma atuação crítica para além da simples escrita sobre o cinema e as novas possibilidades da crítica e da cinefilia através da internet.

Cinética – Dentro de um panorama que inclua esta solidão mencionada, mas ao mesmo tempo um desejo da comunicação que passa pelo contato direto com o leitor, como vocês enxergam o papel do crítico como um “animador cultural”, como o Ruy mencionou?

Ruy – Eu não vejo a solidão e a comunicação como um binômio, uma antítese. Mas, é um fato que as pessoas não estão acostumadas a uma revista que quer sim falar, mas num nível que não seja o do rés do chão, e que demande uma certa busca da parte do leitor. Todos os cineastas que eu gosto são exigentes, e ver filmes é difícil – as pessoas acham que ver filme é algo tranqüilo, mas existe uma dificuldade profunda em ver um filme. Existe uma dificuldade profunda em ler todo texto que merece ser lido, e uma dificuldade profunda em ver todo filme que merece ser visto – o que está zilhões de anos distante da produção corrente de textos, filmes, música, etc. Isso é uma dificuldade, porque existe uma delicadeza profunda nas obras que precisa de uma sintonia muito clara. Tem diretores que conseguem fazer isso com mais comunicação, até porque o meio em que eles estão obriga. O próprio Hitchcock falava que o tipo de relação crítica que ele só foi ter com certas pessoas na década de 60, viesse antes, talvez ele fosse fazer filmes mais pessoais – não que os filmes que ele tenha feito sejam menos interessantes, mas que na falta de uma interlocucação, ele vai fazer o que mercado exigia. Claro que para um diretor como o Hitchcock isso não vai significar uma perda substancial do desejo de fazer – em muitos vai. Por isso que eu acho que há sempre a necessidade de se trazer à tona e defender certos filmes exigentes e ousados, porque se a gente não defender, não será o Globo ou o JB que vão.

Agora não é porque nós somos exigentes e falamos para um determinado nicho que a gente seja contra se comunicar ou não queira fazer tudo para se comunicar. É como a gente programa a Sessão Cineclube, por exemplo (N. do T.: sessão semanal no Cine Odeon, programada em conjunto pela Contracampo e o Grupo Estação): a gente não a programa para ficar passando “pérolas” que a gente sabe que vão dar 300 pessoas, ficar passando só A Doce Vida e Persona. Mas, se for para isso, a gente prefere não fazer – se for pra dizer “olha como a gente passa uns filmes elegantes e queremos ficar bem na fita”, melhor não. A gente quer fazer uma diferença, imprimir uma certa sensibilidade e uma certa diversidade do cinema – que incorporam o mau gosto, que incorporam o cinema de gênero, mesmo sabendo que vão dar um público menor do que as “pérolas”. Eu acho que isso dá o diapasão de como a gente encara o trabalho crítico como um todo. O que importa é ser fiel à sua paixão pelo cinema.

Luiz Carlos – Pro Bergman, pro Fellini, a exibição no Cineclube é absolutamente indiferente. Já prum filme que o John McNaughton fez nos anos 80 sobre um serial killer (N. do T.: Henry – Retrato de um Assassino, exibido numa das mais polêmicas edições do Cineclube) só pode passar num cineclube com curadoria da Contracampo.

Cinética – E quando nasce essa necessidade de ir além da escrita, pra outros meios?

Ruy – Eu acho que a crítica começa no momento em que a luz acende na sala de cinema. Ela pode ser um comentário seu pra uma pessoa que está do seu lado, um amigo, uma namorada ou um ilustre desconhecido. Ela é uma comunicação sobre uma paixão, uma comunicação lúcida sobre uma paixão. Então, ela tem vários níveis. Uma coisa boa que eu acho que a Contracampo fez foi fazer a crítica sair dos registros costumeiros, onde as pessoas iam ler – jornal, semanários, revistas mensais, teses e comunicações acadêmicas. Mas, pra gente a crítica nunca foi só verbal, literal. Existem filmes que são críticas: por exemplo, o Antonioni-Hitchcock, do Bressane. O Godard sempre fez isso, e qualquer cineasta é um crítico de cinema no sentido que quando ele organiza as coisas na tela de uma certa maneira e corta para um outro plano, ele está dizendo “cinema é isso” – e fazer crítica de cinema também é, de certa forma, dizer “cinema é isso”. Agora, com a ressalva de que por mais que você queira responder “o que é cinema”, você nunca vai ter uma resposta porque o cinema é grande demais para que alguém possa dizer “cinema é isso, e acabou” – por isso que a conversa tem que continuar para sempre.

Então, exibir filmes, propor mostras é a mesma coisa que fazer pautas. É você colocar certas coisas em relevo, discuti-las, criar aproximações com estes objetos – olha aí, eu falando em objeto! Neste sentido, é simplesmente uma questão de tirar a crítica do lugar costumeiro, criar novos espaços – e que por serem novos, têm uma vulnerabilidade que eu acredito que é bonita. É uma forma de dar a cara a tapa, de criar espaços lá onde não existia nenhum. Nesse sentido é que eu acho bonito que tenhamos feito uma revista de internet, talvez a primeira revista duradoura de cinema no Brasil exclusivamente de internet – quiçá no mundo! Mas ao mesmo tempo, de fazer de uma sessão corrente de cinema, num cinema que é cult, mas também não é um museu, fazer as pessoas discutirem filmes, propor mostras, trazendo à baila um certo peso especulativo.

Cinética – Você mencionou a internet, e eu queria que vocês falassem mais no papel deste meio para o cinema em geral. É mais que fato consumado que revistas como a Contracampo ou a própria Cinética só podem surgir com a “facilidade” que surgem por conta da internet, mas eu queria falar do meio e a crítica de cinema de uma maneira mais abrangente, passando pelas possibilidades das listas de discussão que cruzam fronteiras estaduais e até internacionais, da vivência mais recente do emule e desta “cinemateca virtual” ao alcance dos internautas, e até da difusão de filmes e obras independentes pela rede. O que vocês acham que estas possibilidades todas influem no trabalho do crítico, hoje?

Ruy – Bom, inclusive isso foi uma questão no próprio surgimento da Contracampo. Em 98, muito pouca gente tinha acesso constante a internet – e muitas sequer tinham computador. Foi algo discutido, e sempre tinha a questão que podia ser uma coisa elitista, o que poucos anos depois ficou claro que não ia demorar muito. Mas realmente este lado de juntar as pessoas e aproxima-las se deu de uma forma que eu acho que poucos podiam imaginar mesmo. Hoje em dia a internet tem uma realidade que é o sonho de qualquer pessoa que tem gostos não convencionais, no sentido que ela é um lugar que permite um encontro de pessoas diversas. Antes você só se encontrava com pessoas através do espaço físico e de ocasiões muito especiais e raras (congressos, viagens, etc), enquanto hoje em dia essa troca se dá de forma muito mais rápida. Isso faz diferença, sobretudo, pra atividades não acadêmicas – não existe um “Congresso de Cinefilia” em que as pessoas se inscrevam e vão (exceto os de ficção científica, quadrinhos, Jornada nas Estrelas, etc). A internet facilita não só o contato, mas a criação de grupos – de podófilos, do que for, mesmo a coisa mais banal do mundo, sei lá, do dedão do pé direito, mas que odeiam o pé esquerdo! Elas podem se juntar num grupo de internet, de tão fina que ficou a segmentação. E ao mesmo tempo você tem o nascimento de grupos de discussão de cinema, internacionais e nacionais ou regionais, que facilitam a troca de informações e fazem com que o crescimento da discussão e a melhora dos argumentos logo surge pela constância da discussão. Se torna mais coeso, mais denso.

Ao mesmo tempo você tem uma difusão enorme de obras, de filmes, muitos deles raríssimos, inimagináveis, através da internet, por processos que ainda têm um trâmite judiciário tão mal compreendido que sequer se sabe direito se são proibidos ou não. A experiência de quem baixa filmes, compartilha direto de HDs de uma pessoa é muito semelhante a gravar uma fita K7 ou VHS e dar para o seu amigo, só que numa escala global – e isso nunca foi considerado uma questão ilegal ou ninguém foi preso por isso. Só que claro, o compartilhamento não é exatamente direto de pessoa a pessoa, por amigos. Então é uma experiência nova, mas que claramente não equivale a pirataria, porque não há ganho de dinheiro com isso. Mas o que importa é que isso cria uma democratização da obra tão grande, e uma familiaridade com ela que talvez seja mais importante ainda.

Mas eu ainda acho que a invenção do VHS, a possibilidade de ir numa locadora escolher um filme para ver em casa, é uma revolução maior – por ser uma forma de você poder estudar os filmes muito mais vezes. Neste sentido, eu acho que a chegada do emule, de baixar filmes, nem é tão revolucionária. Talvez seja para lugares ou grupos que nós, metropolitanos, não temos contato, do interior. De fato, para gente é muito fácil saber de uma ótima locadora, onde você pode conseguir DVDs e VHS de diversos países do mundo, de épocas diferentes da história do cinema, que em cidades menores você não tem muito acesso. Eu até dei um workshop em João Pessoa, há coisa de um ano, e fiz esta aposta: de que no Festival de Cannes do ano seguinte, a maioria dos filmes do festival do ano anterior poderia ser baixado em qualquer lugar do mundo. E isso de fato cria uma novidade profunda da distribuição geográfica do cinema. A internet possibilita, então, que você faça o circuito completo, do ponto de vista da crítica: você pode ouvir falar de um filme através da internet, num site de notícias ou crítica, corre atrás do filme, baixa, assiste, e posteriormente você discute sobre o filme numa lista de discussão e lê uma crítica sobre o filme. Assim, você fecha o circuito no mesmo meio de comunicação. Isso tudo embora eu ache que nada jamais vai substituir a experiência de ir numa sala de cinema, ver um filme em película, com o grão certo, na cor certa, sem nenhuma das distorções que a projeção digital ainda faz e provavelmente sempre vai fazer, por ser um suporte diferente – o que sempre traz algo de si na transcrição.

Do ponto de vista dos desafios que a internet traz pra uma crítica, eu acho que o principal é que nunca foi tão fácil você reproduzir trechos de filmes e com isso nunca foi tão fácil você discutir estilo mostrando a evidência. Se a crítica de cinema sempre invejou a crítica literária porque com ela você podia pegar o trecho de um poema e analisar minuciosamente, mostrando a evidência, agora a crítica de cinema pode fazer isso. Retirar fotogramas de um filme e mostrar porque um corte entre um plano e outro pode ser especial, pegar uma seqüência inteira e pesquisar o estilo do diretor num movimento de câmera. Mostrar, através destas imagens do que você está falando. Isso torna tudo muito mais palpável e torna o próprio trabalho do crítico possa ser mais minucioso do que ele era, de antemão. Se a gente parar para pensar, na década de 70 o crítico ia no cinema, via o filme, e pronto – cinco anos depois só quem ia ler o texto dele e relacionar ao filme eram as pessoas que tinham visto o filme cinco anos antes, porque o filme tinha seu lançamento, e depois acabou. Hoje não, você tem o circuito de VHS, DVD, internet, que facilitam a permanência de uma obra para além de sua época. Naturalmente, tem filmes que vão existir virtualmente para sempre, que são os que ficaram para a história do cinema, e tem aqueles que mesmo existindo em suportes mais fáceis de acesso, não vão ser vistos ou vão ser vistos pelos “anônimos que não deixam memória”. Isso, de certa forma, faz com que algumas obras, aquelas que são mais importantes pra algumas pessoas, ficaram no circuito de visibilidade por muito mais tempo.

Luiz Carlos – Eu acho que uma diferença muito interessante deste período mais recente da internet (emule, banda larga difundida) com aquele em que a Contracampo surgiu. Ali, a internet realmente facilitava muito a circulação de informação, de signos, de imagens, mas não a circulação de obras completas. Você tinha acesso a uma música, mas agora você faz o download do disco inteiro. A partir de agora você importa para o seu HD não os fragmentos de uma obra, mas uma obra inteira, por toda a eternidade. Isso cria imediatamente um outro tipo de relação entre texto e imagem, por exemplo, no trabalho crítico. Porque o texto crítico que você faz sobre o filme que você viu no cinema, ele é um comunicante da sua memória, do que você reteve do filme, de uma passagem efêmera do filme. Você vai escrever um texto a partir de algo que faz menção àquelas imagens, mas que, como o Ruy disse, não tem como trazer a evidência. São pistas, são traços. Com a possibilidade de você ter o filme, no mesmo suporte em que você vai escrever o texto, e sacar qualquer imagem e utilizar da forma que você achar melhor, em consonância com o seu texto. Então, você não está mais falando só da experiência que você teve ao assistir o filme, você está parando ele, rearranjando ele na sua cabeça. De certa forma, a gente está mapeando agora certas obras que a gente achava que antigamente não podiam se prestar a nenhum tipo de desenho. Você não podia criar nenhum diagrama do filme, junto com o texto, na mesma página. Isso cria uma nova arquitetura do trabalho crítico. Já existe em revistas eletrônicas ou blogs, muita gente fazendo um trabalho de associação de imagens, as mais díspares – não só contrapondo fotogramas do mesmo filme, mas fazendo sintagmas de imagens que antes você nem imaginava. Não existia este imediatismo de você sacar fotogramas de filmes feitos em épocas totalmente diferentes, com vídeos, fotos de still e colocar em hipertexto e começar a estabelecer toda sorte de conexões, absolutamente novas. Conexões que não teriam vindo à mente, se não fosse essa nova dinâmica de pensar com imagens. O panorama que existe hoje na internet, não apenas de críticos de profissão, mas de “pessoas amadoras” que estão fazendo uma espécie de crítica selvagem, tem permitindo que apareçam coisas absolutamente fascinantes. E aí eu acho que essa era de maior alcance das obras na internet, DVD (que reeditam filmes que estavam restritas à Cinematecas) permite que um certo espírito da cinefilia esteja voltando. O que é engraçado, porque nos anos 90 só se falava que ela tinha morrido – você não tinha mais ratos de cinemateca, cineclubes, ou o conhecimento vasto de filmes, de forma completamente aberta, onde a pessoa devora filmes do cânone de Hollywood até a vanguarda oriental. De repente, você tem isso de volta – mesmo que o comportamento seja outro entre aquele que passava a tarde na Cinemateca e o que baixa os filmes e fica em casa vendo ou vai na locadora e volta com uma sacola de DVDs para casa. Mas o que importa é que se mantém esta idéia do conhecimento de cinema caótico, no bom sentido. Você poder mergulhar nos filmes numa certa desorientação, onde as coisas vão chegando até você e você vai, mal ou bem orientado (e ai um site como a Contracampo cumpre seu papel, ao fazer pautas e trazer à baila nomes de cineastas e cinematografias inéditas, e dar sugestões), criando uma nova mentalidade de assimilação e fruição de cinema.

Ruy – E o circuito de baixar filmes é a locadora mais diversa de todos os tempos! Não a mais completa, porque tem títulos que você não consegue de jeito nenhum, mas a mais diversa porque é a única que vai ter sucessos de Bollywood, cinema japonês, de Hong Kong, da Coréia, escandinavo, americano, argentino, enfim... E é algo que facilita muito. De todas as formas, a internet favorece o uso das ligações não óbvias, aparentemente não fáceis de se fazer. Você coloca duas palavras estranhas no Google e o próprio mecanismo vai dar para você combinações novas que você nunca tinha imaginado. E o emule vai fazer a mesma coisa: você digita uma palavra, e pode até não ter o filme que você buscou, mas curiosamente vai ter algo que você nem sabia que existia, mas você vai se interessar. E, neste sentido, ele facilita muito a descompartimentação do saber. Se antes o cinéfilo tinha a fama de “ah, ele é um cara que gosta de western; ele gosta de clássicos, etc”, este tipo de figura vai desaparecer, ou se tornar mitológica. Agora, claro que isso pode ser um perigo e criar uma figura completamente esquizofrênica, que acha que o interessante é simplesmente as pequenas culturinhas que uma cinematografia dá, mas ao mesmo tempo pode criar um vigor, no sentido de questionar os códigos mais costumeiros do cinema, como um determinado tipo de naturalismo, um determinado tipo de chantagem emocional que o cinema mais convencional faz com a gente, etc. Neste sentido eu acho que este novo cinéfilo pode ser mais rico.

Luiz Carlos – Você deixa de ter uma Bíblia para o cinema. Você não tem mais uma orientação só a seguir. O cinéfilo, ele não tem mais aquela fonte única que orienta o gosto dele, que diz pra ele o que ele deve ver ou pensar sobre isso ou aquilo. Você tem uma disseminação tão grande...

Cinética – Sem contar que você não precisa mais ser limitado exatamente pelo mercado distribuidor ou exibidor, especialmente o mais direto, do seu país...

Luiz Carlos – Ampliou-se o seu escopo. Antes ele era o circuito exibidor da sua cidade, e as locadoras – que mal ou bem acabam sendo um reflexo do circuito seis meses depois, mais os filmes antigos. Agora você tem acesso a filmes que foram lançados em vários países, mas não no seu, acesso a filmes que não foram lançados em país nenhum, mas que um cara lá conseguiu e colocou na internet, etc.



Parte 4 da entrevista


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