Volta para parte 1 da entrevista

Ruy Gardnier e Luiz Carlos Oliveira Jr. discutem a relação da Contracampo com os leitores de diferentes gerações, o sempre delicado momento em que se “passa de bola para vidraça” e a “solidão criativa”.

Cinética – Você usou a palavra “geração” ao mencionar o surgimento da Contracampo em meio a uma “geração que não fazia nada” –e na qual, portanto, pode-se supor que não havia um “mercado” esperando pela revista. Como você localizaria a própria revista, formada quase toda de pessoas bastante jovens, na sua relação com esta sua geração – e também com as que vieram antes?

Ruy – Eu acho que todo jovem com muita vontade de fazer alguma coisa, totalmente frenético, vai achar que a vida no meio que ele vive é estagnada, porque o quanto ele tem de energia é algo que não vai se dissolver plenamente nas atividades que ele desenvolver. As pessoas têm ritmos diferentes, e é natural que as mais frenéticas sintam qualquer ambiente como estagnado. O desejo de “se fazer alguma coisa” eu acho tão bonito quanto cafona, na verdade, por ter aquela coisa meio abstrata de “ah, preciso fazer alguma coisa...” No meio disso, a vontade de se formalizar uma paixão é quase completamente dissociada da idéia de se formatar um produto. Não que a Contracampo não seja um produto, só pela forma como ela nasceu – ela pode sim ser considerada como um produto editorial, literário, o que seja. Mas, não foi assim que a gente via originalmente, e até hoje não é como a gente vê – e, acima de tudo, nunca vai ser algo prioritário. No momento em que a relação com a necessidade de uma “profissionalização” da revista, de fazer ela se sustentar, tornar-se prioritário, acho que a Contracampo acaba. Ao mesmo tempo, claro, existe a necessidade de você conjugar (e é algo bastante difícil) o desejo de você ter um grupo de pessoas com energia e tempo pra se dispor a escrever textos, sabendo que aquilo, de um ponto de vista profissional, servirá no máximo como um portifólio.

Por outro lado, a gente vê que, quando a Contracampo começa, o ambiente crítico era nulo. A gente tinha um cinema brasileiro inexistente, do ponto de vista do cinema comercial, e um clima onde se um filme nacional era “visível”, se “dava pra ver” ele já era bom. Esse era o ar que se respirava naquele tempo, onde o próprio cinema brasileiro precisava dizer para as pessoas que ele existia. Mal ou bem, isso vai acabando na virada da década, quando você passa a ter 30, 35 filmes estreando regularmente por ano – e no ano passado a gente teve 100 longas-metragens nacionais (aí incluídos filmes em digital, sempre com mais de 61 minutos) sendo exibidos pela primeira vez no Brasil – seja em festivais, exibições únicas, lançamento comercial. Talvez a Contracampo já devesse, naquele momento, ter feito a crítica desta postura de proteção, porque é óbvio que quem se aproveitou deste tipo de raciocínio onde você devia “diminuir o handicap do cinema brasileiro, porque ele precisa existir”, foram os suspeitos usuais que sempre lucram quando muda alguma lógica de edital, quando muda o patrocínio.

Mas, voltando pro assunto da geração, a Contracampo ser uma revista jovem dá toda uma diferença dentro do panorama, por não vir imbuída dos vícios da geração antiga e ter um perfil de renovação. São pessoas que têm um outro ritmo, que gostam de uma série de coisas diferentes, de música, de sair para a rua. Isso muda a maneira das pessoas serem, muda o gosto que as pessoas têm em relação aos filmes. Mas isso tudo é natural: uma geração sempre acaba sucedendo outra e o que eu vejo de muito interessante é que apesar da Contracampo ser feita por pessoas de 20 a 35 anos, mais ou menos, ela não negam as gerações anteriores, elas se sentem parte de uma linhagem. Obviamente que, no Brasil, a gente se sente parte de uma linha de separação, de uma volta a esse desejo de uma crítica ao mesmo tempo analítica e apaixonada.

Eu acho que é cedo ainda para dizer como a Contracampo se relaciona com o entorno da sua geração, para além da crítica. Acho que tem aí uma nova geração consolidada do cinema brasileiro, um Karim Ainouz, uma Tata Amaral, um Beto Brant (por mais que eles sejam de gerações levemente diferentes), ou um Paulo Sacramento, que é da mesma geração que a gente – e todos têm uma certa relação de amor e ódio com a tradição. Do ponto de vista do leitor, eu acho que a Contracampo vem suprir um certo desejo das pessoas, frustrado na sua maior parte, às raias do ressentimento (as pessoas costumavam dizer que odiavam a crítica). Claro que quando você vai fazer alguma coisa que não está na lógica do mercado, você não sabe exatamente se existe uma demanda, vai descobrir no caminho – e felizmente, a gente descobriu com muita felicidade que tinha muita gente que acompanhava, que lia a revista, tanto jovens como pessoas de gerações anteriores. Aliás, os primeiros elogios mais substanciais à revista, quando ela ainda era bastante precária a meu ver, vieram de gerações anteriores – e aqui eu me refiro em especial ao Carlão Reichenbach e ao Inácio Araújo, que são uma espécie de “padrinhos da revista”. O Carlão escreveu numa coluna dele no então ZAZ que era a melhor coisa que tinha acontecido na crítica brasileira em sei lá quantos anos, e o Inácio nos mandou um email dizendo coisas como “vocês estão vendo coisas que a nossa geração viu errado”. É o tipo de coisa que, quando você tem 23 anos e está cheio de vontade de fazer alguma coisa, bate como uma porrada, no sentido de que você está num caminho certo, de que havia um percurso a ser feito, e que por mais que estivéssemos tateando no escuro, havia uma palpabilidade do outro lado. Mas, ao mesmo tempo, isso dava uma baita responsabilidade, porque “agora a bola é tua, meu amigo”, você deixa de ser bola e passa a ser vidraça. Se a gente era “os raivosos que bradavam contra a crítica”, agora a gente passa a ser a crítica – e vão bradar contra a gente. O que é ótimo, desejável, e faz parte do processo.

Ao mesmo tempo a gente via um interesse renovado dos jovens num determinado exercício crítico que começou a surgir muito fortemente, me parece, a partir da Contracampo mesmo. Não sei se não estou sendo vaidoso demais, inflando a importância da revista, mas me parece inclusive que, da parte de certos críticos de jornal, que não necessariamente têm nem mesmo uma ambição maior para a crítica, algo mudou. Os próprios textos passam a, mesmo que por vias transversas, considerar neles outros discursos críticos – sobretudo da parte de críticos que são da mesma geração que a gente.

Cinética – E como é que a Contracampo lida, a seu ver, com esta passagem de uma iniciativa de jovens apaixonados que “querem fazer alguma coisa” para este momento de institucionalização, em que ele passa a ser reconhecida por um leitor, e até pelo meio cinematográfico como um todo?

Ruy – Eu acho que, como todo esforço crítico ou artístico, este processo se dá a partir de um ponto de vista de responsabilidade irresponsável. Você tem que ter o seu quinhão de ousadia, e até mesmo de selvageria em determinados momentos, mas ao mesmo tempo estar guiado por uma certa disciplina. Eu acho que, de certa forma, nós já tínhamos isso desde o começo, por mais que seja claro a diferença hoje, que a Contracampo vai completar oito anos em setembro, que ela está respaldada por uma série de atores do meio cinematográfico – críticos, cineastas, técnicos, leitores, professores que discutem textos da revista em sala de aula, etc. Eu acho que é um processo bem natural, não é algo que nos paute e que a gente discuta todo mês quando vai fazer uma nova edição.

O que me parece é que, em 2006, a Contracampo já cresceu tudo que ela tinha que crescer em termos de recepção interna no Brasil, como repercussão. Ela é uma revista que não é para o público em geral, ela é uma revista para amantes do cinema, que vão aceitar uma certa dificuldade com os textos porque às vezes eles são especulativos demais, porque demanda um vocabulário que talvez o leitor tenha que ir pesquisar sozinho... Dentro deste circuito, a Contracampo já fechou um nicho, e isso naturalmente é um algo que a gente não deseja. Num determinado momento ela foi vista como uma coisa nova, legal, só que é claro que depois ela não vai mais ser nova, ela se torna uma instituição, como qualquer outra. O que não se pode deixar de ter é essa ousadia, essa selvageria, essa irresponsabilidade que eu acho que é necessária em tudo aquilo que é vivo. Tudo que é vivo assume riscos, e isso está na nossa mira o tempo inteiro. Mas, como o nosso desejo de cinema não mudou, como o nosso tesão por trabalhar a animação cultural não mudou, eu acho que a gente nem precisa fazer o check up eventual ou “entrar numa academia” para voltar a entrar em forma.

Luiz Carlos Oliveira Jr. – Este é um ponto delicado, porque tem dois aspectos envolvidos. Se a Contracampo deixa claro desde muito cedo que qualquer coisa para chegar a ser desenvolvido como conceito deveria passar pela paixão e que não se faria concessões no texto, no método de escrita e no método de intervenção no cinema, e a partir do momento em que ela discute não só o cinema mas o próprio fazer crítico, isso cria um risco necessário no qual alguns dos melhores textos da Contracampo a meu ver são produzidos no limite da solidão. Eu às vezes tenho a impressão de que o que eu mais me admiro ou me orgulho do que a Contracampo está fazendo está sempre lidando com uma grande possibilidade de estar solitário no que a gente faz ou escreve. Isso ficou muito claro para mim quando eu percebi que quando alguém de fora vinha comentar ou elogiar um texto meu, minha sensação não era de dever cumprido ou de massagem de ego, e sim uma sensação de alívio, de que eu não me tornei um eremita. Eu acho que a Contracampo nestes oito anos conseguiu se manter livre de qualquer espécie de pressão externa, no sentido do que se deve escrever. Mas, ao mesmo tempo, se aquilo não estiver provocando nada em ninguém, não tem o menor sentido. Por isso que para mim é um grande alívio quando eu vejo que algo escrito na Contracampo provoca alguma coisa, mexe com o meio crítico ou com o meio cinematográfico.

Outra coisa que eu coloco em discussão aqui, no tema das lacunas a serem supridas, é que quando o cinema brasileiro “retomou” e os filmes voltaram a ser feitos em larga escala, estes filmes estão sendo feitos na sua maioria por pessoas que não necessariamente estão a todo tempo pensando o cinema, vivendo o cinema, respirando o cinema. A pessoa entra no set de filmagem e faz aquilo como tarefa, uma atividade, mas a quantidade de profissionais de cinema que parecem ter “caído de pára-quedas” é grande. E eu não estou aqui defendendo uma determinada “panelinha” de especialistas, porque eu não acho que o cinema precise de pessoas diplomadas ou PhDs no assunto, mas porque eu acho que é crucial que o cinema esteja sendo pensado e discutido internamente. E se você for fazer uma enquete nas equipes de filmagens, você vai ver que 99% delas simplesmente não têm uma relação tão visceral assim com o cinema. E o que isso cria é um cenário cinematográfico que parece pedir para não ser discutido. Se as pessoas não discutem medularmente o que elas estão fazendo, é óbvio que o produto do seu trabalho, quando chegar na tela, não vai pedir pra ser discutido – ele só quer acontecer, existir. E isso ajudou a criar um panorama crítico que respondia positivamente a estes filmes, ou seja, dizia que também não queria discutir os filmes. E é aí que eu volto ao que eu dizia quanto a Contracampo não ter muito para onde crescer: se você diz que não quer discutir, e a revista quer discutir a todo momento... Por isso que mesmo nesse nicho do cinema brasileiro que parece querer discutir, pensar, fazer crítica de cinema, parece que também já se chegou num certo limite: já ouviu o que a gente tinha para falar e a partir daí não há o desejo de evoluir a conversa, passar para a fase seguinte.

Ruy – E é engraçado porque a gente sente também este desejo, esta coisa quase órfã de alguns cineastas de não terem o seu filme discutido – como a gente sentiu bem forte no caso do próprio Andrucha. Agora, cada plano de um filme está discutindo o que é o cinema. Não é uma discussão que precise passar pelo bate-papo, pela logorréia, pela discussão ao fazer um plano, mas um plano, um corte ele já é toda uma discussão de cinema. Um corte do McG, dos irmãos Farrelly está discutindo profundamente cinema – de uma maneira que um corte do Thomas Vintenberg não está, claramente. Nesse sentido existe uma grande diferença, uma clivagem, entre certos diretores que estão num processo de querer entender o que é uma imagem – embora seja óbvio que se algum dia eles descobrirem eles vão para de fazer cinema, uma vez que esta é uma pergunta que não tem resposta. A grande graça é correr atrás dessas perguntas, uma vez que as grandes perguntas que a gente deve fazer são as que nunca podem ser respondidas, mas cujas tentativas de resposta são os grandes balbucios de vida que se chama arte.

Agora, quanto à questão da solidão, eu concordo, mas é uma solidão necessária pro gesto criativo, sempre, pra fazer crítica ou arte. Você se sente completamente solitário quando você reconhece uma obra-prima e os próprios diretores parecem gigantes solitários. A Contracampo é do jeito que ela é porque ela tem a necessidade de ser fiel a um desejo dela de cinema. Se o nosso desejo de cinema fosse Joel Schumacher ou Peter Jackson, seria um cinema consensual, unanimista, no sentido de que são filmes feitos para serem tolerados por todos e não pra serem gostados por poucos. Se o seu cinema é Godard, é Sganzerla, é Reichenbach, se você faz uma revista que não tem cara disso, é natural que seu objetivo não vai ser realizado. Teu texto tem cara de quê? Tua pauta tem cara de quê? Tua pauta Tonacci tem cara de Tonacci? Se não tiver, acabou. E é nesse sentido que eu trato a solidão como algo bonito e necessário.



Parte 3 da entrevista



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