olho no olho
Questão de paixão - entrevista com os editores da
Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Jr. e Ruy Gardnier
por Eduardo Valente

Domingo de sol no Rio de Janeiro, e sintomaticamente Ruy Gardnier chega para o bate-papo que tínhamos marcado exultando de alegria por estar saindo da sessão em que descobriu, segundo suas palavras, uma “obra-prima absoluta” do cinema (Desejo Profano, de Shohei Imamura). Esta “paixão avassaladora” pelas obras cinematográficas seria tema recorrente na conversa que tivemos com o outro editor da Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Jr. Talvez ainda mais sintomaticamente, a primeira metade desta conversa se deu no café do Odeon, cinema que se tornou foco central da vida cinéfila carioca desde 2000, quando reabriu sob a direção do Grupo Estação. Neste mesmo cinema, há mais de dois anos a Contracampo co-realiza com o Estação uma sessão semanal (a Sessão Cineclube) que já exibiu 120 sessões de cinema, sempre com distribuição de folhetos com textos sobre o filme e seguidas de debate com a platéia – algumas das sessões, memoráveis. Lá só se deu a primeira metade porque, ainda mais sintomaticamente, a entrevista foi interrompida para que nós três assistíssemos a uma sessão de Desejo Humano, de Fritz Lang, no próprio Odeon – terminando a conversa depois do filme, num bar das cercanias da Lapa.

Nesta primeira parte da conversa, Ruy conta a história do surgimento da Contracampo em detalhes (história da qual, vale dizer, o entrevistador fez parte ativamente por bons sete anos).

Cinética – Uma primeira pergunta para estabelecermos as bases de toda essa conversa, em termos históricos: como e com que projetos surge a Contracampo, em 1998?

Ruy Gardnier – A Contracampo nasceu com um desejo e uma avaliação de ambiente onde algumas coisas estavam relativamente bem claras – ainda que caiba ressaltar que a Contracampo nasceu quando eu tinha 22 anos, então éramos todos muito jovens. Isso já explica muita coisa, porque você tem uma perspectiva, mas muito pouca experiência. Você tem uma vontade enorme, e ao mesmo tempo eu acho que todo jovem sabe muito mais aquilo que ele não quer do que aquilo que ele quer.

Mais ou menos quatro anos antes, eu tinha começado uma paixão avassaladora pelo cinema. Na verdade eu tinha entrado na faculdade para fazer jornalismo de música pop, mas eu já tinha muito claro que eu queria ser ou um jornalista cultural ou crítico. De fato, eu achava que as duas coisas se misturavam – mas hoje, para mim, uma é muito diferente da outra, e quase todo mundo que é chamado de crítico de cinema me parece ser um jornalista cultural, cinematográfico. Então eu tive esse “desvio”para o cinema, por paixão, mas sobretudo porque o cinema parecia engajar aspectos do mundo em que a música não chega – através do cinema você tem muito mais naturalidade para falar de sociedade, de sexo, de política, enfim, de uma série de coisas. Ao mesmo tempo eu já tinha uma relação com a arte mais abstrata, porque a música é geralmente mais abstrata do que o modo como as pessoas geralmente vêem o cinema, para apreender narrativas, historinhas, personagens – enquanto na música, embora você possa aprecia-la só pela letra, geralmente há uma apreensão mais abstrata.

Na faculdade, eu estava à frente de dois projetos de fanzines: um sobre música, chamado Dissonância; e um sobre cinema, chamado Limite. Durou pouquíssimo – o Limite menos ainda que o Dissonância, tendo o primeiro duas edições, e o segundo, quatro. Este trabalho era feito junto com outras pessoas, como o Bernardo Oliveira, que depois foi ser o primeiro editor da Contracampo junto comigo, o Juliano Tosi, que também trabalhou na Contracampo, o Gustavo Saldanha. A Contracampo vai nascer, então, ainda na faculdade, de uma observação do ambiente crítico no Brasil e de uma negação deste ambiente. Todos os esforços que a gente via naquele momento, tanto na crítica acadêmica (representada pela Cinemais) quanto na crítica de grande mídia, não estavam em sintonia com a nossa paixão pelo cinema, e por isso a gente acreditava que não devia entrar em nenhum destes esquemas – sejam os papers e apresentações acadêmicas ou a escrita mais superficial orientada para dizer ao espectador o que ele vai assistir. Aliás, eu até chamava esta última de “orientação do espectador”, mas eu não acredito mais que ela “orienta” o público. Eu achava que escrever sobre cinema é uma forma de honrar o cinema, e considerava estes dois sistemas um tanto desonrosos com o cinema – por isso mesmo eu me veria como um grande traidor trabalhando em algum deles (o que continuo achando, aliás). Não que o problema esteja em ganhar dinheiro com o cinema (afinal é o que eu faço, dando aulas), mas sim em ter uma relação com o cinema que passa muito mais por uma lógica do consumo – acadêmico ou de jornal, entre os quais eu não vejo muita diferença, por mais que o público para o qual eles sejam dirigidos seja diferente. Foi então que eu decidi juntar pessoas para este projeto – uma característica que eu sempre tive.

A Contracampo nasceu como um fanzine, como um desabafo, a partir de uma espécie de tensão que é muito adolescente, ou pós-adolescente, de “fazer alguma coisa” – algo do tipo “na nossa geração as pessoas não fazem nada, então vamos fazer alguma coisa”. É importante dizer que este alguma coisa era muito diferente para cada um dos fundadores da Contracampo. Para mim era alguma coisa muito direta, muito específica, onde eu tinha bem claro o que eu queria fazer – e como. Já o Rafael Viegas, um outro fundador, nunca teve o cinema como foco principal dos seus interesses – ele gosta muito mais de música e tem uma cultural musical erudita, sobretudo de música contemporânea, jazz mais experimental, e é um estudioso de filosofia. Gosta de cinema, de algumas coisas (na verdade muito poucas), mas se junta muito mais conosco porque andávamos juntos (eu, ele e Bernardo) e gostávamos de discutir cinema. Já o Bernardo (Oliveira) está entre os dois pólos do processo por ser uma figura muito instável, no melhor dos sentidos, um cara muito selvagem nos seus apetites por arte. Num determinado momento ele podia ver o Grupo Corpo e só falar de dança por dois meses, depois ele ia reouvir Miles Davis e só queria escrever sobre música – da mesma forma que ao ver certos filmes ele podia ficar absolutamente entusiasmado com o cinema.

A Contracampo nasce então sem periodicidade específica, sem colunas. Eram coisas que eu já tinha vontade de instalar, mas ao mesmo tempo eu tinha uma necessidade muito maior de fazer aquilo acontecer rápido. Na verdade, eu coloquei a revista no ar sem pedir permissão aos outros dois – eu só avisei que estava lá. Já tinha um texto meu e um deles, e eu queria fazer a cobertura do Festival do Rio de 98 – e foi assim que ela nasceu, então. A partir daí, no primeiro ano teve uma série de consolidações, de mudanças que foram dando pra revista algo mais perto da cara que ela tem hoje. Certamente a coisa mais crucial neste primeiro ano foi a sua entrada, Eduardo, mesmo que no começo eu achasse que você era mais um colaborador, alguém que nem queria muita proximidade, que não ia nas nossas reuniões, etc. Mas aos poucos nós fomos consolidando uma relação ao nos encontrarmos nos filmes, discutir sobre cinema, e num determinado momento isso coincidiu com a saída do Bernardo – quando eu já estava conversando com ele sobre a possibilidade de te chamar para editar a revista com a gente. O Bernardo já não se via tanto nos rumos que a revista ia tomando, ao mesmo tempo em que ele, por exemplo, queria abrir a revista para falar de música – quando a meu ver a gente nem dava conta, minimamente, de toda a diversidade do cinema. Neste momento há uma certa guinada, que eu até desejava desde o começo, para tornar a revista mais azeitada numa certa agenda, de fazer edições, de cobrir os filmes em cartaz – sem tirar o pilar básico que é a paixão pelo cinema e pela especulação sobre cinema. A idéia de que a paixão não exclui a lucidez – que é um embuste que o rigor acadêmico gosta de dizer: que você tem que considerar as obras como um objeto, quando todo mundo que gosta verdadeiramente de arte não pode considerá-la como um simples objeto. A revista nasceu com pessoas que gostavam de ler filosofia, de ler crítica literária, ensaios, pensadores (como Georges Bataille, por exemplo), com o gosto pela especulação, por trazer idéias sobre o cinema – idéias num sentido mais forte, não simplesmente uma pequena idéia, mas discutir conceitos através do cinema.

Ao mesmo tempo, tem algo que talvez venha do meu lado de apaixonado por Torquato Neto e uma certa cultura jornalística da década de 60 e 70, que é o de jamais se submeter ao leitor. Ou seja, a gente guia o processo pelo nosso desejo, e o leitor que se interessar vai junto. Daí a gente poder e querer fazer pautas daquilo que está na nossa sintonia, enquanto redação. Por isso, se um texto, digamos, sobre Crime Delicado, precisa de mais uma semana para ficar pronto, finalizado, isso é mais importante do que ele estar no ar quando o filme entra em cartaz. O que guia é o nosso desejo de fazer o melhor trabalho que a gente pode – independente da relação com o leitor, por mais que esta tenha que ser respeitada. Ela só não pode virar o dogma maior da revista, que vai impedir que ela funcione no seu próprio ritmo – por mais que, como editores, preferíssemos que este ritmo fosse o mais próximo do leitor.

Tem mais algumas coisas que valeria mencionar, como o fato do grupo inicial ser formado por pessoas afeiçoadas por cinema, mas que não necessariamente mergulhariam de cabeça nisso, até termos uma redação formada, majoritariamente, por alunos de cinema – um processo que se deu até que bastante rapidamente. Além de algumas pessoas que são essenciais nessa história, seja como editores ou espécies de sub-editores, como o próprio Juliano Tosi, o Daniel Caetano, o próprio Junior... Mas se a gente for mencionar tudo dessa história, a gente não acaba hoje.

Parte 2 da entrevista



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