in loco - marguerite duras: escrever imagens

Um olhar de criança
por Eduardo Valente

Em cada um de seus filmes, Marguerite Duras nos propõe um jogo com a irresponsabilidade de quem parece disposto a reiniciar do zero o cinema como o conhecemos. Tal frescor talvez se explique pelo fato de que Duras chega ao cinema, como diretora, já consagrada como grande artista das Letras, o que nos ajudaria a entender um certo desapego, um olhar quase de fora que ela parece jogar sobre o cinema, e que a permite perguntar a cada filme “por que o cinema precisaria ser isto? por que não poderia ser outra coisa? e se poderia ser outra coisa, que coisa seria essa?” Nessa constante e irrequieta busca, ao mesmo tempo em que seus filmes parecem nos pedir um olhar virgem, disposto a ser desafiado como se nunca tivesse visto nada, nos demandam também considerável grau de análise, numa apreciação profundamente cerebral dos seus efeitos e ferramentas de realização. Uma mistura inesperada, arriscada mesmo, entre engajamento e distanciamento.

Dentro deste caminho, poucas obras cinematográficas foram construídas segundo um programa tão coerente como o de Duras. Num primeiro momento, ela parece investir num cinema de ficção mais tradicional, com o emprego de atores que falam, e cujas vozes ouvimos no momento em que enunciam estas falas. Ali, o enfrentamento de Duras parece se dar com a própria idéia de personagem, das possibilidades de um ator esconder e construir constantemente este personagem, deixando claro que a casca a que temos acesso é e será sempre limitada tanto por algo que está fora de cena (tanto as imagens não enquadradas como tudo que aconteceu antes na vida de cada um dos personagens), como pelo fato de que aquilo que está dentro de cada uma daquelas pessoas será eternamente secreto e escondido. Não por acaso, em Nathalie Granger (1972), de alguma forma o ápice deste primeiro momento de Duras, o personagem de Gerard Depardieu se vê despido de todas as certezas sobre si mesmo quando confrontado pelas personagens de Jeanne Moreau e Lucia Bose: “você não é um representante comercial”, dizem elas com certeza na voz daquele homem que entra em sua casa para vender um produto – ao que ele parece a cada momento mais incerto sobre o que, afinal, ele é de fato.

Num segundo momento, o do trio de filmes composto por A Mulher de Ganges, India Song e Seu Nome de Calcutá em Veneza (1973/1974/1976, respectivamente), Duras incorpora a dissociação entre som e imagem de maneira radical, começando a trabalhar com narrações em off que se operam por regras distintas das personagens e espaços que transitam pela tela. Do jogo de distância e encontro entre esses dois elementos se constroem ainda entrechos possíveis de drama – no entanto este drama parece cada vez mais deslocado e frágil, podendo se esvanecer com qualquer palavra dita pela narração. Finalmente, O Caminhão (1977) indica a descida final de Duras rumo aos alicerces da narração/ficção/drama, separando de forma radical a idéia de uma narrativa das imagens mostradas (o que será ampliado em Navire Night e Agatha), ao ponto de realizar nada menos do que quatro curtas apenas com materiais a princípio captados para estes dois longas, mas que podiam de tal forma ser retrabalhados segundo o método de Duras que deram origens a outros filmes (como poderiam dar a inúmeros mais).

Não por acaso, depois destes trabalhos, seu cinema parece fechar-se sobre si radicalmente com L’homme atlantique (1981), um média-metragem que interroga o tempo todo as imagens que constrói, ao ponto de finalizar-se com um longuíssimo “plano” (na falta de expressão mais adequada) de tela preta – como se a indicar que ali a crise do questionamento de Duras sobre isso mesmo que é a imagem cinematográfica chegasse ao ponto máximo possível: o de negação da mesma. Se a obra de Marguerite Duras terminasse com este filme, teríamos uma história contada maravilhosamente com início, meio e fim: a de um trajeto de confrontamento com o que o cinema havia escolhido ser ao longo de sua história, ao ponto de negar-lhe o que tinha por mais caro (a imagem em movimento). Mas, como de alguma maneira simplesmente não seria adequado que justamente a história deste cinema tão pouco afeito a normas se fechasse de forma tão precisa (e, por que não dizer, esperada), há um último filme realizado por Marguerita Duras, As Crianças (Les enfants, 1984). E se é dele que me interessa de fato falar aqui, talvez isso se deva a este elemento originário mesmo de seu projeto: o fato de que ele parece, quando inserido neste contexto, vir como depois do final de algo, quando já não se esperaria mais que houvesse imagem a ser buscada – quanto mais estas que ele nos apresenta.

Corpo estranho

Se visto dentro da ordem cronológica dos trabalhos de Duras, As Crianças já nos colocaria um estranhamento bem direto nos seus primeiros planos: ela abandona o seu trabalho essencialmente centrado na voz off, algo radicalizado ao longo de onze anos e doze filmes, e retoma um cinema com atores que interpretam personagens que falam. No entanto, nenhuma dentre estas categorias (personagens, atores, falar) pode ser entendida segundo os sentidos comumente atribuídos a elas, porque de fato não se poderia imaginar que Duras chegaria a este momento como se não tivesse passado por tudo que passou. E é aí é que talvez possamos começar a perceber que, mais do que apenas um problema (tanto que não é por acaso que o filme não é citado nem pelo colega João Dumans em seu texto sobre o cinema de Duras nesta mesma pauta, nem em nenhum dos dois textos existentes no catálogo da mostra, escritos por Stella Senra e Madeleine Borgomano), talvez seja melhor pensar sobre As Crianças como um verdadeiro reencontro da obra de Duras com alguns amigos queridos que estiveram com ela ao longo do seu trabalho e que, em alguns casos, foram sendo deixados de lado e aqui são revistos com um misto de alegria, nostalgia e distanciamento.

Alegria sim, porque para além do fato de ser inequivocamente uma comédia (algo de que Duras se orgulhava bastante), o principal sentimento que emana da tela ao longo da duração de As Crianças é de prazer. Não um prazer fútil nem abobalhado com as possibilidades do cinema, mas um prazer real de quem, tendo ido até o fundo da sua desconstrução, volta a descobrir algumas pequenas alegrias – como a de trabalhar com atores e seu timing de enunciação; a de construir e desconstruir personagens e situações a seu bel prazer; ou a de perceber as diferentes formas de cada ator lidar com a poesia da palavra falada (hiper-presente na obra cinematográfica de Duras, claro, mas aqui parecendo renovada), criando uma musicalidade especialmente deliciosa no trato com a língua francesa (assim como a língua russa, usada de maneira incrível em duas cenas do filme).

Com os atores (e os personagens que estes constroem), reaparecem também alguns elementos deixados de lado por Duras desde Nathalie Granger (filme com o qual, aliás, há mais do que um simples diálogo em jogo – tanto que As Crianças começa com a recusa de uma criança de ir à escola, algo já presente naquele filme de 1972), como o uso que o filme faz das personas de Pierre Arditi e André Dussolier, atores consagrados que reprisam aqui elementos do “jogo cênico” de Depardieu em Granger (mas também de Daniel Gélin em Destruir Disse Ela, de 1969 – ator que, vejam só, retorna aqui, quinze anos depois, a um filme de Duras, no papel do pai). Eles interpretam estes personagens que parecem enviados de um espaço externo ao “mundo Duras”, que obedecem a ditames e normas do mundo “real” (ou pelo menos de como este se faz presente no cinema mais tradicional), e que simplesmente não conseguem compreender a ausência de regras claras de temporalidade, causalidade ou drama no seio destas narrativas.

Em oposição radical a estes personagens “construídos”, é preciso se destacar especialmente a assombrosa presença em tela de Axel Bougosslavsky, que no papel principal de Ernesto parece de tal forma diferente de tudo que entendemos como atuação cinematográfica que seu próprio nome é apresentado nos créditos iniciais de maneira totalmente separada dos outros, como se ele fosse mesmo algo de outro mundo (o “mundo Duras?”). Não seria nenhum exagero afirmar que é apenas este caráter distinto de Bougosslavsky que permite que Duras possa engendrar essa narrativa de Ernesto, esta figura com corpo de homem de quarenta anos que afirma (assim como seus pais e irmã) ter sete anos de idade. Não se trata de falar de “verossimilhança” nesta afirmação, já que isso é algo que passa longe das preocupações de Duras (embora seja sim tema do filme, especialmente em relação ao personagem do repórter/Arditi), mas sim de algo que poderia na melhor das hipóteses ser descrito como aura: que Ernesto e seus pais afirmem que ele tem sete anos de idade só não é recebido como uma representação digna do “teatro do absurdo” porque a presença de Bougousslavsky em tela nos parece de tal maneira estranha e inesperada que nos faz acreditar que, de fato, tudo é possível.

Este sentimento de uma generosidade de olhar frente ao mundo da ficção cinematográfica, do olhar do espectador estar aberto a cada cena (ou mesmo a cada fala) a uma nova série de regras de temporalidade e relações, talvez seja exatamente este ponto final onde Duras chega após um mergulho nas profundezas da negação da imagem cinematográfica como construtora de sentidos dados. Por isso tudo é que As Crianças, para além de seus temas de enorme profundidade filosófica, tem o sentimento palpável de um filme infantil – talvez na mais completa acepção da palavra. Não um filme para crianças verem, ou com personagens que são (ou dizem ser) crianças, mas acima de tudo um filme que pede para ser visto por um espectador com olhos tão inocentes frente ao jogo da construção da ficção cinematográfica como se fossem os de um verdadeiro recém-nascido que abre seus olhos num cinema pela primeira vez. A maneira pela qual Duras chega a esta expressão cinematográfica no final da sua vida, aos 70 anos de idade, cria um paralelo com um outro cineasta cujo cinema nos vem à mente mais de uma vez ao longo deste filme aqui (pela maestria em conseguir enquadrar frontalmente com extrema simplicidade e beleza, pelo uso dos diálogos e do jogo dos atores que remetem ao teatro ou a literatura sem deixar de ser cinematográfico, etc): o português Manoel de Oliveira. Neste filme aqui, Duras parece se aproximar da mistura entre extrema sabedoria e jocosidade quase infantil que tantos dos últimos filmes de Oliveira apresentam e que, frente ao cinema, parecem dizer aquilo que, não por acaso, foi o título do último texto escrito e publicado por Duras: “C’est tout”.

Maio de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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