in loco - marguerite duras: escrever imagens O
instante do filme por João Dumans
- colaboração especial para a Cinética
Em
1966, depois de um intenso período de atividade literária e política, a escritora
francesa Marguerite Duras dirige o seu primeiro filme (La Musica). Ao longo
dos dezenove anos seguintes, sua dedicação ao cinema não implicará nunca num abandono
de sua trajetória como romancista: se o cinema ocupa o centro de suas atenções
neste período, o centro do seu cinema, por sua vez, será ocupado por inquietações
herdadas de sua atividade literária. Do interior mesmo dessa passagem, sem deixar-se
fixar por nenhum dos lados, Duras se propõe, segundo suas próprias palavras, a
“retomar o cinema do zero, numa gramática bem primitiva... bem simples.” Na verdade,
encontraríamos uma imagem da trajetória do seu cinema se invertêssemos essa proposição:
primeiro, uma gramática bem simples e, só depois, o reencontro com esse “grau
zero” da escritura cinematográfica. Dois de seus primeiros
filmes, Détruire, dit-elle (1969) e Nathalie Granger (1972),
ainda que por meio de uma narrativa mais convencional, antecipam algumas questões
que serão trabalhadas de forma sistemática por seu cinema nos anos seguintes.
Entre elas, a fragilidade do corpo, sempre ameaçado pela imobilidade e pela desaparição,
e a rarefação da imagem, muito menos um “duplo” do mundo do que um vestígio de
inscrição do tempo. Entre essas duas dimensões, a palavra, elo de ligação da memória
com o presente. Nesses primeiros filmes, Duras reafirma uma postura que acolhe
os ecos da efervescência política dos anos anteriores, situando-a num universo
onde o afastamento radical das convenções sociais evidencia também o vazio das
utopias e ideologias vigentes. Esse afastamento é dado de início pelos espaços
onde a narrativa de ambos os filmes se desenrolam.
Em
Détruire dit-elle (foto), o hotel de campo deserto, onde Stein (Michael
Lonsdale), Max Thor (Henri Garcin) e sua mulher, Alissa Thor (Nicole Hiss) procuram
desestabilizar o mundo de convenções entorno do qual Elizabeth Alione (Catherine
Sellers) constrói sua vida. Em Nathalie Granger, a casa, espaço dos afazeres
cotidianos, da banalidade e, sobretudo, da espera: Isabelle (Lucia Bosè), acompanhada
por uma amiga (Jeanne Moreau), reflete em silêncio sobre a violência incomum percebida
em sua filha mais nova, Nathalie (Valérie Mascolo). Praticamente toda a ação de
ambos os filmes se dará nesses espaços, que funcionam como refúgios contra uma
dinâmica de mundo ordinária, baseada em regras e preceitos refutados pelos personagens.
A recusa das convenções significa um rompimento completo com uma ordenação exterior,
que aqui se faz sentir como uma disjunção dos próprios corpos em relação ao espaço
que ocupam. Em Détruire, dit-elle, os cortes bruscos
da imagem praticamente restringem qualquer tipo de movimentação dos personagens,
enquadrando-os em planos descontínuos que se acumulam mais do que se sucedem.
Em Nathalie Granger, esses cortes dão lugar ao movimento, mas associam
à passagem do corpo a imediata percepção de sua ausência. O rastro deixado pela
passagem do corpo (a idéia de presença/ausência que será bastante trabalhada por
Duras) promove um esvaziamento que atua diretamente sobre a imagem, afetada em
seu próprio poder de representação. A lógica de enunciação (numa chave claramente
bressoniana) também é marcada por essa ruptura, já que os personagens parecem
atravessados por palavras e sentimentos que não chegam a – e tampouco procuram
– dominar. Se parece haver qualquer utopia a respeito dessa
disjunção com o mundo exterior, Duras nos confronta também com o perigo representado
por esse “esvaziamento”, por esse afastamento do mundo, que corresponde, por vezes,
a um mergulho na indiferença e, em outros momentos, de maneira mais radical, a
uma aproximação da morte. Em seu cinema, esse rompimento é traduzido por uma ameaça
que assombra permanentemente o corpo, fazendo de sua presença uma instância de
ligação cada vez mais frágil e precária com o mundo material. O
espectador, um corpo a maisÉ
o canto da mendicante do Ganges que introduz, em India Song (1974), a estória
da esposa do embaixador da França na Índia (Delphine Seyrig), que oferece aos
homens – “a quem quiser”, como lembra uma das vozes que recuperam a estória –
o cansaço e a indiferença do seu corpo, do seu amor. Toda a narrativa do filme
é pontuada pela presença exterior deste lamento que invade o quadro e que reafirma
o isolamento dos personagens no interior da Embaixada da França, um dos poucos
refúgios contra a miséria e a doença que assolam o seu entorno. Mas esse refúgio
é também o lugar inevitável da tragédia carregada por um nome: Anne Marie Stretter.
Em torno dele, como que encantados pela possibilidade de um amor irrestrito, absoluto
– que em Duras significará: um amor que consome toda a vida – orbitam esses
outros nomes, imobilizados pelo intolerável de sua situação: viver num país cuja
própria idéia lhes causa repugnância. Em India Song,
a violência maior do exercício de poder sobre a terra ocupada é evidenciada pela
indiferença, pela incapacidade dos personagens, em suma, de sobreviver para além
do amor e de estabelecer qualquer vínculo material ou sensível com o mundo que
os cerca. Entregar-se ao amor absoluto é, necessariamente, aceitar a dissolução
completa do corpo no amor. A vida torna-se assim o lastro de uma experiência já
consumida, vestígio de um movimento que se inscreve no mundo com grande dificuldade.
O lento movimento dos personagens, em India Song, é o reflexo dessa impotência,
do cansaço e do cuidado do corpo, ameaçado em sua sobrevivência por seus próprios
gestos. A loucura do vice-cônsul de Lahore (Michael Lonsdale), único homem a quem
Anne Marie Stretter recusa entregar-se, constitui a ameaça maior: seus gestos
incontidos rompem com a lógica que rege o movimento dos personagens em quadro.
E mais do que isso, ele é o único que, em seu exercício brutal de atirar da janela
contra os leprosos do Ganges, aponta para uma possibilidade de contato sensível
com o mundo exterior. Do espaço da Índia e do seu entorno,
relegado sempre ao extracampo, nos chegam apenas vestígios imprecisos: nomes de
cidades, estados, rios, enumerados livremente sem nenhuma ordem ou continuidade
apreensíveis. Tratam-se, segundo a própria Duras, de referências “falsas”, que
compõem a estrutura melódica – assim como as próprias vozes e os personagens –
em torno da qual se estrutura o filme. O que chega a nós, portanto, é a presença
indiferente dos nomes (de embaixadores, adidos, vice-cônsules, administradores)
sobre essa cartografia imaginária (la mousson, la boucle du Ganges,
le delta, le Mékong, Savannakhet), esvaziada por vezes de
sentido, mas sempre plena em sua musicalidade. Dessa sobreposição violenta, (funções
oficiais/ inventário geográfico), assim como daquela outra, que associa a tragédia
amorosa de Anne Marie Stretter ao trajeto da mendicante do Ganges (o amor total/a
miséria, a fome), nascerá a perturbadora beleza musical desse filme, e junto com
ela, como sempre em Duras, o seu mais profundo sentido político. Em
India Song, as próprias vozes que evocam a estória a partir de seus fragmentos
são afetadas pela presença dos corpos em quadro. Ora elas funcionam como agentes
de uma rememoração precária, feita de indícios, fragmentos, ora como observadores
hesitantes, implicados também naquela relação. Embora evoque um tempo passado,
esta “narração” se faz sempre no “presente da imagem”. Dito de outra forma: presenciamos
o desenrolar das imagens “ao mesmo tempo” que as vozes o fazem. Essas vozes, como
lembra Duras, “são totalmente autônomas” e “não sabem que são escutadas.” A encenação
se dá portanto em duas instâncias – a dos corpos, por um lado, e a das vozes,
por outro. Entre uma e outra, o espectador, última instância de ligação concreta
daquele universo com o presente, já que somente por meio dele os fragmentos daquelas
memórias poderiam vir a ser mais uma vez reunidos, mais uma vez associados a suas
imagens. O fato é que, mesmo em sua totalidade, esses fragmentos
só podem contar parte da estória, e ainda assim evocada por vozes cuja origem
este espectador desconhece. Se, por um lado, somos o último refúgio no presente
contra a anulação do movimento que ainda anima aquelas imagens, por outro somos
também o último elemento de uma ligação marcada pela impossibilidade e pelo vazio.
Para além da concepção de que nos esforçamos diante da imagem para completá-la,
juntando os fragmentos de memórias e enunciados coletivos para reinventá-los segundo
nossas próprias possibilidades – a idéia, portanto, de um espectador ativo – somos
engajados nessa relação exatamente por nossa incapacidade de “agir”. Testemunhamos
assim uma interdição que se manifesta de duas formas: a que se coloca entre o
espectador e o filme – presente, mas inacessível; e a que se manifesta entre os
homens e que os impede de se comunicar, de resgatar suas memórias, de concretizar
seus afetos. Ao
longo da obra de Duras, a origem desta interdição, ou dessa perturbação que se
coloca entre os personagens é difícil de ser definida, surgindo como uma espécie
de pressão do mundo sobre os corpos, ou pressão do tempo contra os desejos. Em
Le Navire Night (1979 - foto), por exemplo, nunca nos é dada a ver
a razão pela qual “F” recusa encontrar-se com o “homem da história”, como Duras
se refere ao protagonista. Em outros trabalhos, como Ágata ou les lectures
illimitées (1981), por outro lado, essa interdição surge como um impedimento
concreto que restringe a aproximação dos dois personagens. Nesse último filme,
sobre as imagens de uma casa de praia desabitada, intercaladas com longos planos
fixos da areia e do mar, duas vozes recuperam as lembranças de um outro tempo,
refazendo por meio do que resta de suas memórias uma cumplicidade que se confunde
com o amor. Projetamos de forma muito precária um pouco da relação desse casal
sobre as imagens esvaziadas de Duras, sobre seus longos planos gerais, a casa,
os cômodos. Com o tempo, nos damos conta de que a cumplicidade entre esse homem
e essa mulher diz respeito a algo mais essencial, uma relação fraternal, e que
aquelas memórias poderiam pertencer, talvez, à sua própria infância. Aquelas
mesmas imagens, ainda que praticamente esvaziadas da presença humana, transformam-se
então ligeiramente diante dos nossos olhos, abrem-se a outras possibilidades,
a outras memórias, enfim, que permanecerão todavia inacessíveis. É do interior
mesmo deste impedimento que um novo tipo de ligação entre os dois irmãos deverá
ser possível, uma ligação que se dá em algum lugar entre o passado – da memória,
e o presente – da projeção. Jamais saberemos se aquele diálogo alguma vez aconteceu,
se aqueles sentimentos foram algum dia enunciados, ou se nos chegam simplesmente
como vestígios inscritos no tempo daquelas imagens. E o tempo daquelas imagens
é, antes de tudo, a duração inapreensível do próprio filme. Falávamos
de uma interdição, quando, na verdade, a melhor palavra para descrever essa perturbação
que se coloca entre os personagens e seus afetos, entre o espectador e os agenciamentos
do filme (vozes e imagens) talvez seja outra. Mais do que com um impedimento,
o cinema de Duras parece nos confrontar permanentemente com uma “perda” – algo
que se subtrai da nossa capacidade de apreensão do mundo, da capacidade dos homens
de se relacionarem, de sua possibilidade de ver. É a partir dessa perda inicial,
comum e irreparável, da consciência, portanto, de que algo em nossa história já
não é mais possível pelas mesmas vias, de que as coisas do mundo já não podem
ser vistas da mesma maneira, que um outro tipo de relação deve surgir. De alguma
forma, essa economia de meios a que Duras se refere constantemente em suas entrevistas
e mesmo em alguns de seus filmes (equipes pequenas, baixo orçamento, produção
mínima), e que será determinante no próprio desdobramento de sua filmografia,
corresponderá também em boa parte dela a uma espécie de economia do visível, a
uma perda relativa àquilo que pode ser visto e mostrado. É entre essas duas dimensões
que descobriremos o sentido político do seu cinema. É preciso levar a perda ao
cinema, lá onde ele começa, e é preciso que nela estejam também implicados os
personagens e o próprio espectador. Presente já na mise-en-scène
mais convencional de seus primeiros filmes, essa idéia será radicalizada a partir
de 1972 com La Femme du Gange, que inaugura a trilogia dedicada à estória
de Anne-Marie Stretter. A partir daí, Duras introduz uma questão decisiva para
o seu cinema, trabalhada de forma intensa nos anos posteriores. Em La Femme
du Gange, pela primeira vez, ouvimos os ecos dessas vozes a que nos referíamos
anteriormente, sobrepondo-se ora de forma mais estreita ora mais distante sobre
suas imagens esvaziadas, como restos de acontecimentos passados ou como enunciados
descolados do tempo e do espaço. Cada filme de Duras recolocará esta questão sob
uma nova perspectiva, resignificando não apenas vozes e imagens, mas investigando
o próprio sentido dessa relação. A presença do off, daí
em diante, introduz ao mesmo tempo uma nova dinâmica de visibilidade do
corpo, que o conduz progressivamente à imobilidade, como em India Song,
ou ao desaparecimento, como em Son Nom de Venise dans Calcutta désert, que
retoma a banda sonora completa desse último filme e a associa ao vazio
de um palácio em ruínas, ocupado pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Sobre
os escombros do filme original, Duras faz surgir um outro filme, que redimensiona
completamente o sentido das imagens e o estatuto das vozes. Em Som nom de Venise
dans Calcutta désert, o enclausuramento dos personagens vistos em India
Song dá lugar a um aprisionamento de outra natureza. São as próprias vozes
em off que, desta vez, aparecem ligadas de maneira irremediável ao espaço,
ressoando por entre os corredores, os cômodos e os jardins abandonados de um velho
palácio. Aqui
também, assim como em Ágata ou les lectures illimitées, há a sensação de
que presenciamos uma espécie de acontecimento “da” imagem, que se dá no momento
mesmo da projeção, diante dos nossos olhos. Isso ficará mais evidente em dois
dos últimos filmes de Duras. No díptico Aurélia Steiner – Melbourne (1979)
e Aurélia Steiner – Vancouver (1979) a disjunção entre a imagem e a
voz em off é radicalizada a tal ponto que já não é mais possível estabelecer
uma relação definitiva de sentido entre elas. A enunciação, que antes implicava
duas ou mais vozes, dará lugar aqui a uma única voz, variando o registro discursivo
sobre si mesma. As imagens, encadeadas pela circularidade e pela repetição, são
de uma beleza extrema, e contrastam com a violência implícita nos enunciados,
que resgatam fragmentos de memórias do holocausto. Os planos gerais, suaves no
primeiro filme e áridos no segundo, reiteram a solidão desse lugar ocupado pela
voz. Os corpos desaparecem por completo, à exceção dos observadores da ponte em
Aurélia Steiner – Melbourne, índices de uma presença perfeitamente integrada
à paisagem e, por isso mesmo, como que imune aos efeitos do tempo. Se
temos a impressão de que esse filmes já não podem “representar” nada, se nada
acontece, portanto, “na” imagem, é o próprio presente da imagem que constituirá
o “acontecimento”. A respeito dessa questão, o crítico francês Jean Louis Comolli
dirá que o cinema “torna sensível, perceptível” a “passagem do tempo nos rostos
e nos corpos” dos atores. Ao praticamente suprimir esta instância de inscrição
do tempo cinematográfico (o corpo do ator, o corpo do personagem) Duras consegue
fundar um outro tempo para o seu cinema ou, melhor dizendo, um outro cinema, no
qual as imagens não pertencem a tempo algum. A cada projeção, portanto, as vozes
em off são como que convocadas a inscrever novamente no presente o tempo
daquelas imagens. A imagem, um corpo a menosUm
caminhão azul, mostrado sempre em planos fixos e abertos, atravessa as autovias
de uma região periférica de Paris. Ele viaja ao longo de todo o dia mergulhado
na monotonia de uma atmosfera cinza e azul, cujas proporções mais de uma vez nos
fazem pensar no mar. Num outro espaço, intercalado a essas imagens, Duras e Depardieu
lêem o roteiro de um filme: dois personagens, um homem e uma mulher. Ela, une
femme déclassée, uma mulher sem pertencimento, uma dissidente. Ele,
um caminhoneiro, que escuta tudo que ela diz, e vê tudo que ela vê. Ele trabalha
e ela é, simplesmente, transportada por ele. Encerrados na cabine do caminhão,
a mulher e o homem percorrem o mundo, um mundo “cheio de coisas”, como ela mesma
diz. O caminhão desliza pela rodovia e a mulher, em suas palavras, diante das
imagens vazias da estrada, faz um inventário das coisas do mundo, das coisas que
ela vê, das coisas que ela sabe ou viveu, de tudo, enfim. Duras:
A única coisa em comum entre eles é uma certa violência no olhar. Frente a esse
vazio. Diante deles. O inverno nu, o mar. O silêncio no início do filme teria
representado a primeira relação entre os personagens. Relação longínqua. Quase
indiferente, maquinal. Teria sido uma espécie de mise en place de uma relação
porvir. Depardieu: Esta relação, aconteceria? Duras: Talvez
nunca. Depardieu: O que você acha? Duras: Nunca. Como
todo filme, Le Camion (1977) é uma investigação sobre o olhar. Mas
entre o nosso olhar e a imagem, aqui também, uma “relação longínqua” – “uma espécie
de mise en place de uma relação porvir”. E isso é tudo. Não veremos nada
além desse caminhão, nada além da rodovia e das paisagens. Nenhum outro detalhe
que reafirme uma ligação mais profunda do nosso olhar com a sua imagem, nada que
nos permita decifrá-lo. Nada a não ser esse roteiro, sonhado pelo próprio filme,
seu fantasma. Entre Duras e Depardieu, um diálogo improvável conjuga o filme no
futuro, antecipa seu fracasso, sua perda. Entre a mulher e o caminhoneiro, a política.
Nele, o proletariado, a consciência da luta de classes, dos direitos. Nela, a
rejeição absoluta de qualquer solução que passe pelas vias já dadas, descrença
absoluta – mas, ainda assim, uma postura. Ela dirá: “O fato de eu não perceber
uma certa lógica nas coisas não significa que eu não tenha uma, da minha parte”.
E esta lógica implicará, mais uma vez, em Duras, numa recusa do homem, numa redefinição
dos sentidos, num desentendimento inicial e absoluto que pode conduzir, talvez,
ao reencontro com o mundo. Depardieu: Como seria ela?
Como ela é? Duras: Pequena. Magra. Triste. Banal. Ela tem essa
nobreza da banalidade. Ela é invisível. O que resta do corpo
ao filme é o que resta do filme ao olhar. A prefiguração de uma passagem, de um
acontecimento, de um encontro que se dá em algum lugar para, logo em seguida,
se desfazer. É preciso esperar pacientemente por um reencontro ou provocá-lo,
para que alguma coisa, qualquer coisa, se passe. O essencial, dirá Duras ainda
em Le Camion, foi alcançado: “eles estão juntos, num mesmo lugar, durante
um certo tempo”. E ainda, parecendo reafirmar algo que nos diz diretamente respeito:
“eles vêem a mesma paisagem, ao mesmo tempo, a partir do mesmo espaço”. O
cinema, em Duras, talvez seja o lugar deste acontecimento – aparição momentânea,
diante de nós, da imagem. Presença do espectador, presença do filme. Encontro
que faz com que testemunhemos de sua existência e, ele, por sua vez, da nossa.
Como esses dois vestígios assombrados pela desaparição que se encontram em Les
mains negatives (1979). Ou como a tela preta, vazia, em L’Homme
atlantique (1981), que dilui no escuro da projeção esses dois mundos que se
olham: “Você vai olhar todos os espectadores no cinema, um por um e cada
um em particular. Lembre-se bem disto: a sala do cinema é por si o mundo inteiro
bem como você, você é, você, por si só. Nunca esqueça. (...) Olhe à sua volta.
Até onde a vista alcança você reconhecerá essas extensões fixas, esses vales cimentados
das guerras e da alegria, esses vales do cinema, eles se olham, eles se encaram.” Maio
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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