in loco - festival de brasília 2007
Primeiro dia: Tradição e conservadorismo
por Cléber Eduardo

Parece não haver nenhuma dúvida de que, em matéria de primeiras exibições, o Festival do Rio é hoje o maior evento do cinema brasileiro. Talvez tal frase possa ser posta em dúvida se, extraindo a quantidade de títulos como único critério de valoração, afirmarmos que o de Brasília é o mais importante. Há uma sutileza, eventualmente explícita, nessa diferença. Maior é uma noção matemática. Mais importante, um valor simbólico. Brasília é mais importante por uma série de razões – mas, nesse momento histórico, por ostentar um percurso de 39 edições anteriores, por ter o cinema brasileiro como centro de tudo e por ser o único evento só de títulos inéditos.

Já na I Semana do Cinema Brasileiro, em 1965, considerado o evento número um do festival, só havia feras na grade, muitos no primeiro ou segundo longa: Roberto Santos com A Hora e a Vez de Augusto Matraga; Leon Hirszman com A Falecida; Paulo Cesar Saraceni com O Desafio; Walter Lima Jr. com Menino de Engenho, Luis Sérgio Person com São Paulo SA. Não corramos o risco de comparar os filmes daquele ano com o da 40ª edição, mas Brasília chega ao fim de 2007 com altas expectativas – embora sofra uma saudável pressão dos outros festivais do ano. Afinal, o Festival do Recife "lançou" Cão sem Dono, de Beto Brant. O É Tudo Verdade lançou Santiago, de João Moreira Salles. O Festival de Gramado, Castelar no Pais dos Generais, de Carlos Alberto Prates Correa; Deserto Feliz, de Paulo Caldas; e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. O do Rio, Mutum, de Sandra Kogut; A Casa de Alice, de Chico Teixeira; e Estômago, de Marcos Jorge. São alguns dos filmes mais fortes dessa temporada. Se Brasília é o mais importante, espera-se dele que exerça essa importância. E são os filmes que a mantém. Por isso, quando se chega ao festival, espera-se, mesmo quando não se espera tanto assim, algo de forte.

Bastante central para a importância do festival tem sido a proeza, como conceito, de realizar um evento de cinema e para o cinema só com primeiras exibições. Se o critério de exclusividade é bastante questionável para os curtas, como já comentamos aqui, a estratégia do ineditismo para os longas voltou a tornar o festival uma questão. Uma primeira exibição não é importante em si enquanto valor estético, mas, como um festival é também um evento, interessado em atrair a cobertura da imprensa, o ineditismo torna-se uma ferramenta de atração midiática. Em outras palavras, um filme não melhora ou piora porque estréia em Brasília, mas sua apresentação será realizada em cenário de competição, de discussões em mesas em torno da piscina do Hotel Nacional e nos debates oficiais pela manhã, de expectativas e frustrações, de apostas nos bastidores, de possíveis maus olhados após a cerimônia de premiação e de sincera explosão de felicidade dos premiados. Há uma tradição e uma cultura de Festival de Brasília.

Essa tradição confunde-se, eventualmente, com conservadorismo dogmático. Filmes sem cópías em película, por exemplo, são ainda hoje eliminados de antemão, numa opção talvez romântica, de resistência da película, talvez para premiar os esforços de produção com negativo, talvez pelo desejo de resistência. No entanto, o mundo, como se sabe, está em movimento. E resistir, em certos aspectos, é conservar. E conservar, em certos aspectos, é fechar os olhos. Isso vale também para os critérios de convites para a cobertura do festival. Algumas publicações mais empenhadas na reflexão ar, como Cinética, Contracampo, Paisá e Cinequanon, não têm direito a passagem área e hospedagem, ao contrário das publicações impressas de grande mídia – mesmo com pouco espaço que dão para a cobertura ou sem compromisso com a análise dos filmes. Cinética, é bom que se diga, está em Brasília por tabela: o convite foi feito para Cléber Eduardo, o curador de Tiradentes, não para um dos editores de Cinética. Haverá cobertura, claro, mas por teimosia e desejo de refletir sobre estes filmes em seus efetivos “nascedouros públicos”.

Se essa estratégia de Brasília é mais uma resistência (sabe-se lá exatamente a quê) também demonstra um bloqueio à reflexão crítica. Nenhum dos veículos vinculados ao prêmio Jairo Ferreira mereceram poder reagir em primeira mão aos filmes exibidos – embora, este ano entre os concorrentes haja uma série de cineastas com carreiras muito ligadas à crítica e à reflexão. É lamentável esse descaso, ainda mais em um espaço tributário de Paulo Emilio Salles Gomes. Como o festival avalia quem cobre ou não pelo valor da centimetragem dos textos, por seu valor de publicidade em última instância, o critério cultural é deixado de lado e em benefício de um critério matemático-financeiro, reproduzindo, apesar da imagem de festival político, os critérios de filtros econômicos de toda a sociedade. O festival de cinema e para o cinema não pensa pelo viés do cinema desse modo.

Descasos à parte, em sua programação e capacidade de atração de filmes, Brasília vai bem. Não se duvida que os realizadores, apesar de saberem da tradição do evento, estão de olho nos prêmios recheados: total de 190 mil reais para os longas-metragens, 75 mil para os curtas em 35mm, 50 mil para os 16mm, 30 mil para o ganhador do júri popular de longas e 20 mil para o júri popular de curtas. Nenhum outro festival distribui tantos reais entre realizadores e suas equipes. Os júris decidirão pelo futuro imediato da saúde financeira de profissionais do cinema – e de começos de outros filmes, por tabela. E que cinemas avaliarão? Que cinemas premiarão? O que Brasília legitimará como elite do cinema brasileiro contemporâneo. No ano passado, não custa lembrar, essa escolha foi por Baixio das Bestas, de Claudio Assis: pela nova geração de imagem bonita e olhar duro, que choca pela crueldade.

O que esta edição nos reserva? Como se sabe, nenhuma seleção curadoria ou comissão de seleção inventa um cinema, só pode refleti-lo, de maneira bem ou mal sucedida. Teremos pela frente mais um longa de dois veteranos em Brasília: Carlos Reichenbach (Falsa Loura) e Julio Bressane (Cleópatra); o segundo longa de dois diretores cujos filmes de estréia foram exibidos no Festival com sucesso e prêmios: Lais Bodanski (Chega de Saudade) e Joel Pizzini (Anabazys, co-dirigido com Paloma Rocha); além do terceiro do mais importante cineasta brasiliense da nova geração, José Eduardo Belmonte (Meu Mundo em Perigo), e  finalmente uma estréia - a de Daniel Bandeira (Amigos de Risco). No papel, como se diz em futebo, é um bom time: equilibrado e que promete. Em campo, são outros quinhentos. Se não chegamos a esperar a repetição de 1965, que o Festival promete, isso promete. 

Novembro de 2007

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