ensaio Boa
caligrafia visual em busca de um caminho por
Paulo Santos Lima Marcada
por um trabalho de repercussão extrema via YouTube (Tapa na Pantera) e
por duas presenças em Cannes (com Alguma Coisa Assim em 2006 e, agora,
com Saliva), a obra de Esmir Filho pede neste instante não um julgamento
prematuro, mas sim olhos atentos a esses seus primeiros passos. Em outras palavras,
ver de que maneira e para onde esse cineasta está caminhando com sua criação,
sem tentar lhe registrar uma identidade, um RG autoral. Uma observação antes de
uma decretação. De seu primeiro curta, Ato II Cena 5,
de 2004 (co-dirigido com seu colega de Faap, Rafael Gomes, assim como Tapa
na Pantera), ao recém-saído do forno Saliva, há uma evidente busca
por melhorias, por estruturar mais solidamente a narrativa, construir melhor a
relação entre espaço e personagens, utilizando com mais habilidade os recursos
cinematográficos a fim de criar sentidos através das imagens. Entre um e outro,
algum exercício de aquecimento, como em Vibracall (2006) — teste de montagem
sem diálogos, em três minutos — e mesmo em Tapa na Pantera, teste de atuação
em estado bruto. Algumas
recorrências estão nessa argila em modelagem. Como a atenção ao universo intimista
dos personagens. Uma opção que traz ao conteúdo dramatúrgico dos filmes algumas
questões relacionadas à contemporaneidade, como a fugacidade da experiência humana
(a bela seqüência da danceteria de Alguma Coisa Assim - foto no topo da
página), a incomunicabilidade entre sexos (no mesmo filme) ou a presença
tecnológica (que ganha funções “orgânicas” em Vibracall, em que duas garotas
reutilizam o celular como um discretíssimo vibrador em sala de aula - foto acima). Essa
recusa pelo nacional, em se registrar algo do “mundo real”, coincide com um afastamento
do naturalismo, algo patente desde o primeiro filme, Ato II Cena 5, na
sua extrema teatralização dos enquadramentos e atuações. Daí ser coerente a esse
projeto de cinema anti-naturalista uma predileção pela montagem que cria sentidos
na costura dos planos, e menos nos planos longos – ainda que estes componham alguns
dos “experimentos” de Esmir em sua ginástica preparatória. São freqüentes a fotografia
com filtros, os desfocos, os movimentos chicoteados de câmera e a forte marcação
de cena (marca de um cinema previamente idealizado, e, neste caso de Esmir, menos
teatral que próxima de um cinema tableau como o de Jean-Pierre Jeunet,
com Ímpar-Par (2005) como melhor exemplo). Nessa
forte preparação prévia do que será o filme, há entretanto um problema de foco.
Em Ímpar-Par, o problema se faz colossal, pois há uma introdução inicial,
salpicando vários personagens inúteis, que adia a ida ao centro do curta: o jogo
(anêmico, diga-se) entre o protagonista sapateiro e sua amada. Essa ausência de
foco samba junto a uma falta de concisão em seu cinema, o que faz com a repetição
de planos impere sobre a fluidez – caso de Vibracall, que, apesar de curtíssimo,
não cria fluxo na repetição ad nauseam de planos ilustrando o orgasmo que
está para tomar conta da mocinha. Esse reforço da informação trazida pela imagem
por via da repetição se faz crucial naquela que é a maior recorrência dessa meia
dúzia de curtas: o discurso oral. Uma contradição a ser discutida, pois se é evidente
o esmero visual dos dois últimos filmes de Esmir Filho, os diálogos ou vozes sobrepostas
assumiram na inversa proporção. Um
jovem cineasta tateando procedimentos para seu cinema narrativo? Talvez, mas não
podemos deixar de lado algo que o próprio disse sobre seu projeto de cinema em
entrevista dada à Cinética durante o 11º Festival Brasileiro
de Cinema Universitário, que é manter “um maior apelo de público”, manter
a autoria sem perder a comunicação com a platéia. O resultado é arriscado, pois
em Tapa na Pantera (acima), verbo tomando corpo na tela, o único interesse
está no conteúdo da fala e no acting de Maria Alice Vergueiro, nada além.
Em Alguma Coisa Assim e Saliva, essa mescla de cinema narrativo
(na dramaturgia) e experimental (na palheta visual), ou seja, esse acuro da imagem
poluído pela falta de foco e, pior, pela pesada malha de falas (falas estas “naturalistas”!),
torna-se dramática. O
filme de 2006 tem a melhor seqüência filmada por Esmir Filho até esse momento:
a da danceteria. Um momento sublime, indicador do norte para o qual Esmir Filho
pode apontar seu cinema. Aqui, os dois amigos, Caio e Mari, vão à pista acompanhados
por uma câmera que, diferentemente dos tableau de outrora, está junto a
eles, ora chicoteando com a montagem sintonizada com a pulsação sonora, ora observando
a errância de Mari naquele lugar e captando o semblante frustrado da mesma quando
ela, apaixonada, vê o amigo gay Caio beijando outro cara. Temos, aqui, um parentesco
distante com o cinema asiático, um tanto da disco que Beto Brant filmou em O
Invasor, mais um pouco do eficiente padrão nightclub dos filmes americanos.
Eles saem da discoteque e Esmir enfatiza o que estava óbvio minuto atrás: que
Mari gosta de Caio. Haverá uma longa seqüência num supermercado (acima), com forte
marcação, vários planos do rosto de Mari frustrada e derretida e um blablablá
sem fim que reescreve aquilo que já estava traçado desde a primeira (também boa)
seqüência do filme, quando ambos correm pelas ruas por entre os carros e rasgando
a calçada na correria. O que segura o filme até o final é a presença da solar
Caroline Abras. Em
Saliva não é muito diferente. O começo parece uma (boa) videoarte, meio
um filme de Arthur Omar, com câmera colada na pele da garota de 12 anos, que tateia
o espelho embaçado e deixa sua saliva nele. Aqui está um diretor manipulador da
imagem, criando texturas e dando, efetivamente, algo acqua, refrescante, por via
da luz, coisas mostradas. Saberemos, a seguir, graças a uma série de diálogo tanto
canhestros, que ela dará seu primeiro beijo de língua num menininho de sua idade.
O filme alternará imagens pretéritas dela com a amiga mais velha ensinando-a como
beijar e sua ida, titubeante (ela tem nojo, o filme não cansa de mostrar e fazer
ouvir). Chegando o momento, há um oceano de imagens redundantes que metaforizam
o primeiro encontro de lábios da pequena. Que fique claro,
se ambos os filmes passassem por um filtro que retivesse imagens em excesso e
algumas falas que, longe da poesia, cumprem o pior lado do didatismo dramatúrgico,
haveria mais dois belos curtas brasileiros. Saliva, por exemplo, usa a
profundidade de campo do shopping Eldorado, em São Paulo, com estruturas metálicas
e uma luz esbranquiçada, não resultando num fetichismo estético, mas comentando
a pureza daquele momento em que a menininha será algo entre um anjinho e uma mulher.
Se a falta de foco e segurança toma de redundância os filmes de Esmir Filho ou
se, de fato, ele acredita nesse seu projeto de cinema híbrido e tanto “engordurado”
nas imagens, isso é algo cuja resposta estará no tempo — e nos filmes. Pelo ótimo
fluxo visual da primeira metade de Alguma Coisa Assim, pode-se dizer que
os seis curtas de Esmir Filho são como um avião que decola sem rota de vôo ou
sob o peso de uma enorme âncora encalhada na pista. Ou seja, há uma aeronave com
fortes motores para se voar alto. editoria@revistacinetica.com.br
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