olho no olho
Festival Brasileiro de Cinema Universitário:
Perguntas e respostas
por Felipe Bragança
Logo que se encerrou o 11º
Festival Brasileiro de Cinema Universitário, maior e mais
consistente festival do gênero no país (realizado em maio/junho
no Rio de Janeiro e Niterói), reuni algumas questões, a partir
de idéias levantadas durante as sessões, e as enviei por email
a alguns dos diretores presentes com seus curtas no evento. Não
se trata de uma seleção dos melhores filmes (até porque não puder
ir a todas as sessões), nem dos premiados, mas um painel aberto
de filmes e realizadores que me trouxeram questões mais diretas.
Vamos às respostas colhidas – em três partes.
* * *
Vídeo para Camila – 2005 – 12 min. – DV (produção:
ECA-USP)
Direção: Luiz Paulo Iazzetti
Cinética: Seu filme é um estudo da linguagem
do vídeo caseiro, uma construção de decalque e mapeamento, digamos
assim, de uma linhagem de auto-narração hoje comum e recorrente
na internet, nos blogs e nos flogs. Como você chegou
a esse formato, e que tipo de efeito você procurava com essa gramática
do filme amador?
Luiz Paulo: Meu desejo inicial era construir
uma história de maneira realista. A única coisa que imaginava
era uma fotografia realista e câmera na mão. Aos poucos fui percebendo
que a história que almejava contar tinha um cunho íntimo, pessoal,
em primeira pessoa e imediatamente me veio a idéia de que o filme
poderia conter todos os elementos de um registro amador caseiro,
formato em si mesmo pessoal e íntimo, ligado por vezes a um sentimento
saudosista, interessante a um dos temas principais do filme (inferido
o próprio nome): a saudade de Camila. O vídeo caseiro é talvez
o registro que para nós tem o maior estatuto de "imagem do
real", porque remetido às nossas próprias experiências pessoais
ao fazer parte ou mesmo realizar nossas próprias gravações caseiras.
Pareceu-me um desafio interessante (e um grande desafio experimental)
unir às características do registro amador algumas das características
do cinema clássico. Fiquei assistindo a uma série de vídeos amadores,
fui atrás de documentários intimistas e assisti várias vezes A
Bruxa de Blair.
Cinética: Queria falar sobre o momento
em que o filme toma um viés diretamente narrativo na construção
do pai antagonista e do desfecho trágico. Esse desdobramento,
ao mesmo tempo que nos remete a uma encenação íntima de episódios
policiais (como programas tipo Linha Direta), soa um tanto
funcional, mecanizado, como que para dar um desfecho ao universo
antes instalado. Fala um pouco sobre essa opção.
Luiz Paulo: Minha proposta era unir um
estilo de construção semelhante a um vídeo
caseiro a uma narrativa que seguisse princípios da construção
ficcional, clássica. Tentei adequar à "aleatoriedade"
do registro caseiro, a “funcionalidade” e algumas das características
principais da narrativa. Incluso nesta idéia está o estabelecimento
de um antagonista e o encaminhamento narrativo para um desfecho
em que o conflito principal é resolvido (tinha de fato a intenção
de estabelecer a cena final como um conflito entre "mocinho"
e "bandido", comum ao gênero policial). A intenção era
impregnar o filme de um "viés narrativo" desde o início,
mas observando o filme a partir de seu comentário, de fato penso
que é possível que não se faça essa leitura (de que o filme possui
um viés narrativo desde o início), justamente pela duração e pela
intensidade inicial das características do registro amador. Desta
forma o filme, a partir de um ponto, poderia de fato parecer "trair"
o universo inicialmente instalado.
* * *
A Sentinela – 2005 – 22 min – DV (produção:
FTC-BA)
Direção: Michelle de Paula
Cinética: Seu filme, sem dúvida, foi o
que mais me encantou entre os mais de 40 curtas e vídeos que assisti
no Festival. Me interessa, especialmente, a articulação que você
faz entre uma imposição direta de um personagem (através da fala
impregnante da personagem) e uma fluidez dos espaços e dos tempos
contemplados – no caso a Casa de Detenção de Menores de Salvador.
Queria que você falasse um pouco sobre essa opção pelo vazio e
pela ausência de corpos, articulados com a fala da menina. Como
chegou até ela, e quais filmes te serviram de referência?
Michelle: Desde o início eu pretendia que
o filme tivesse um tom de sensibilidade crua, nas imagens e nas
palavras – e, por outro lado, que o filme não tivesse nenhuma
semelhança com reportagens jornalísticas. Não queria crianças
e adolescentes falando com o rosto modificado na ilha de
edição, nem descrevendo simplesmente um crime cometido, nem tampouco
esconder o lugar. Então desde que comecei a escrever o meu projeto,
a escolha foi a de usar vozes e lugares vazios para contar alguma
história, a história de vida que eu descobrisse lá. Só que outra
preocupação minha foi como mostrar o lugar. Pensei que os lugares
teriam de se mostrar habitados, como se alguém tivesse passado
por ali há poucos instantes: sinais de comidas ou pratos sujos
no refeitório, camas por fazer, objetos pessoais jogados, uma
água que escorre do chuveiro, e assim por diante. Outro tipo de
imagem buscada – porque as filmagens foram realmente uma caça
a imagens! – foram aquelas que indicassem o lado de fora
(estando nós todos do lado de dentro): seria então o que poderia
ser visto pelos meninos e meninas de lá, como as imagens através
das grades e janelas... Pouco antes de começar revi filmes como
Os incompreendidos, do Truffaut, Os Esquecidos,
do Buñuel, um documentário chamado Girlhood, que acompanha
duas meninas presas saindo de uma instituição, mais um filme que
tem um ritmo e uma narrativa que me encantaram durante o processo:
Elefante, de Gus Van Sant
Cinética: A instalação de uma contemplação
particular é uma operação cinematográfica das mais caras ao cinema
contemporâneo de investigação. Por outro lado, se eleva também
o desafio de se conseguir que essa contemplação não se exprima
através de um esvaziamento dos personagens e das ações, nem de
um esvaziamento de um olhar crítico-dramático. Acho que seu filme
dialoga diretamente com esse desafio ao tentar dar vida à personagem
central e seu discurso através de um tempo de observação cadenciado.
Como você vê essa sua relação com o tema do aprisionamento e as
possibilidades de dar vida a uma personagem impossibilitada de
agir?
Michelle: Busquei construir esse efeito
tanto através do discurso quanto do tipo de imagem buscada. Presos,
porém seres pensantes, com um passado e com a esperança de um
futuro. Presos, porém com um mundo através da janela, e com
um mundo particular ali dentro, com sua rotina, objetos e sua
própria lei. E a menina em particular foi definitiva para esse
drama, essa ação. Ela conseguiu dar a dimensão de passado, de
futuro, de conflitos, de desejos, dos momentos vividos na instituição,
com um teor crítico (e não simplesmente expositivo), vindo de
alguém que analisa a sua realidade e o mundo que a cerca – além
de demonstrar uma luta interna contra o que se é, o que se foi e
o que se pode ser. Como não entrar nas situações que aquela
voz descreve e até visualizá-las? Ela possibilita a empatia,
todos nós podemos nos identificar com alguma das histórias que
ela conta. O que sinto é que encontrei muita vida num lugar, a
princípio, fechado e triste.
* * *
Natal – 2005 – 15 min. – DV (produção: Universidade
Federal Fluminense – UFF)
Direção: Marcelo Ikeda
Cinética: Natal parece procurar
um encantamento e uma irritação física da imagem, que vai das
referências familiares à sonoridade e aceleração das imagens concretamente
tratadas como objetos de fricção e alguma comicidade. Essa agressividade
de olhar aparece como uma estética do desespero, que também dialoga
com outros de seus filmes. De que maneira, essa estética te aparece
como um projeto de apreensão do mundo hoje?
Marcelo: A princípio, é bom deixar claro
que não me interessa “chocar” ou “causar mal-estar” como objetivo
último, como fim dos meus trabalhos. Acho que, se causam essas
reações nas pessoas, é mais pelo que elas foram “educadas” a assistir.
Meu projeto de cinema não é um projeto “negativo”, e sim de construção
de uma imagem, de um universo particular. Mas ainda assim concordo
que as imagens de fato “não causam bem-estar ” (o que não necessariamente
implica que elas causem o seu oposto), simplesmente porque acho
que essa não é uma função do cinema a priori. E se a idéia
do desespero é de fato comum aos meus outros vídeos, creio que
é um desespero mudo, uma consciência trágica da condição humana,
desse absurdo. Mas não sei até que ponto isso se manifesta no
Natal pois acho que, no fundo, é um filme afetuoso.
Cinética: Outro fator relevante no filme
é a ingenuidade consciente dos elementos de linguagem, que nos
remetem às narrativas infantis. A secura com que a passagem sobre
o avô entra na fruição, e o discurso off final, revelam
uma inesperada camada de melodrama ao filme, fazendo com que ele
se mostre mais como um despejo afetivo do que um discurso crítico.
Como você tenta articular esse “umbiguismo” inerente ao seu cinema
com uma força compartilhada na tela?
Marcelo: Como eu estava dizendo, o Natal
é um filme infantil (a idéia da travessura, a dublagem dos roncos,
a voz off chamando o avô, etc.). Filmar é uma grande travessura,
ato de subversão. Mas essa travessura é afetuosa, sempre. O filme
é como se fosse o ponto de vista de uma criança, mas ao mesmo
tempo de uma criança que sabe que não é mais uma criança, que
já cresceu. Acho que daí é que talvez surja esse “desconforto”
que é acompanhar sua projeção. É também uma idéia de que o Natal
só dura um dia, que depois voltam os dias em que temos que pagar
as nossas contas, etc. Eu queria que essa idéia de um “filme infantil”
estivesse também na essência do filme, por isso busquei um diálogo
com o primeiro cinema (as imagens aceleradas também me passam
isso, as cartelas um tanto pomposas, etc) e a idéia do “filme
caseiro”, que é muito importante para mim. Na verdade essa grande
quebra no filme que entra com as imagens do avô é porque eu queria
que ficasse claro para as pessoas que o Natal não era um
filme trash (ou pelo menos um filme trash como as
pessoas vêem um filme trash). Eu queria que as pessoas
se surpreendessem com a sua própria avaliação ao longo do filme,
do que elas esperam de um filme, do que elas esperam de uma família,
do que elas esperam delas mesmas quando vêem um filme. Por isso
(para mim) presenciar uma sessão do Natal é ao mesmo tempo uma
experiência fascinante e dolorosa.
* * *
Ímpar Par – 2005 – 18 min – 35mm (produção:
FAAP)
Direção: Esmir Filho
Cinética: Seu filme é uma fábula, um semi-musical
com toques de afetação. Chama a atenção sua total entrega a esse
espaço de discurso afetivo/imaginário que me remete a um certo
cinema europeu interessado em encenações superlativas e uma atmosfera
circense de cena, mas também a uma dramaturgia folclórica televisiva.
Queria que você falasse sobre esse seu interesse, suas idéias
em torno dessa opção.
Esmir: Me interesso muito pelo cinema mudo
e pela pantomima. Contudo, não queria
reproduzir as obras de cinema mudo, com efeitos de película antiga
e aceleração nos movimentos dos quadros. E é por isso que resolvi
contar essa história que tivesse muito dos gestos, coreografias
e música narrativa, mas não dispensasse os diálogos, que acho
fundamental para a trama. O filme nasceu do apreço pelos contos
universais e atemporais que comunicam, através de símbolos coisas
do cotidiano da vida de todos. Tentar traçar
com delicadeza e leveza uma história sobre o relacionamento de
seres humanos, contados através da relação dos personagens com
seus respectivos sapatos.
Cinética: Esse diálogo aberto com gêneros
ditos populares no Brasil tem se localizado de maneira majoritária
em um cinema de produção proto-industrial e muito associada a
uma certa estética apaziguada e/ou populista. De que forma, a
seu ver, você vê essa relação entre a investigação e o jogo de
linguagem e os gêneros cinematográficos mais cristalizados?
Esmir: Acho que o ideal seria você conseguir
experimentar novas linguagens sem se
afastar do público. Sem o público, os filmes não são nada. Quando
algum filme consegue um maior apelo de público, isso é motivo
de grande felicidade: saber que posso realizar os meus trabalhos
“autorais” e ao mesmo tempo comunicar com as pessoas que os assistem.
Acho muito importante a comunicação da arte. Senão fosse importante,
você faria filmes para si mesmo ou para um seleto grupo de pessoas
e isso, para mim, não valeria à pena. Acho que devemos explorar
novas linguagens com cuidado e responsabilidade. A grande fragilidade
do cinema brasileiro é o roteiro. E por isso tento trabalhar muito
a partir de um roteiro bem estruturado, mesmo que a história seja
simples, sem grandes "cambalhotas" narrativas.
Parte 2, com mais quatro entrevistas
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