in loco - cine pe 2009
Dia 2: As imagens, entre o rigor e a ausência
por Cléber Eduardo

A segunda noite do Cine PE teve na competição nacional sete curtas e um longa, Mistéryos, o culto, estranhíssimo e arriscado filme paranaense de Pedro Merege e Beto Carminatti. Como na sessão de abertura, dominada pela Orquestra Cidadã (cinema em forma de música), reinou o talento local, através de Tião – assim mesmo, sem sobrenome – diretor de Muro, curta exibido em 2008 na Quinzena dos Realizadores. Para empregar palavras a respeito, só mesmo em texto à parte. Isso porque Muro, se comparado aos curtas e longas exibidos até agora, é de outro planeta. Não exatamente uma mureta, mas um abismo o isola, separando-o dos demais. Já o longa do Paraná, ganhador do Festival de Curitiba em 2008, é um divisor de posições. Há quem receba de braços abertos suas duas características mais “problemáticas”: o teor literário e a fotografia “expressiva”, dois elementos notáveis não tanto pela qualidade (discutível), mas por chamarem atenção para si, para serem notados (aqui em Cinética mesmo, Eduardo Valente e Fábio Andrade já escreveram elogiosamente sobre o filme). É como se o experimentalismo intelectualizado, mais que sensorial, tivesse baixado na Vera Cruz, sem vergonha de assumir sua condição de filme estilizado com peso em estúdio (mesmo nas externas). Pré ou pós-moderno? Talvez ambos.

Entre os curtas, ainda que sem o mesmo brilho de Muro, as melhores imagens foram exibidas pelo cearense Selos, filme em 35mm de Grazielle Dias que, ao contrário do que os “novos cearenses” nos últimos anos vêm nos habituando, afasta-se da experimentação visual ou estrutural. Por que melhores imagens? Porque a força de Selos está em partes específicas, não em seu conjunto. Selos impõe-se pela forma rigorosa e delicada de colocar a câmera no interior de uma casa, em relação aos atores, assim como pela presença de seus silêncios e por uma espontaneidade construída, não acidental, com uma energia sensual que nos remete a Lucrecia Martel e com uma suavidade de olhar familiar a O Céu de Suely, de Karim Aïnouz – orientador do projeto. Retificação: Martel e Aïnouz com o olho regulado pelo tripé, com senso de observação fixo. Contenção e latência.

A noite foi marcada ainda por duas estréias em um mesmo filme: Distração de Ivan passou pela primeira vez em um festival e é o primeiro filme com dinheiro de edital de Cavi Borges (em parceria com Gustavo Melo), hoje o realizador e produtor mais ativo do Brasil, que adotou a estratégia de fazer “filmes dentro do possível” em vez de esperar a loteria dos concursos. O volume de dinheiro do prêmio da Petrobrás (R$80 mil, aos quais se somaram outros R$ 4 mil de Cavi, que dessa vez trocou a meia dúzia de integrantes da equipe de seus filmes anteriores por mais de 40 pessoas) resultou em maior quantidade de planos, além de uma variedade de distâncias focais e angulações, sem com isso ser um ganho estético. O ambiente é familiar ao cinema de Cavi: uma favela, onde um menino vive o dia-a-dia de sua infância, entre o lúdico e a violência; afetuoso e duro ao mesmo tempo. Cavi Borges tem um discurso na contramão de seus colegas de cinema, aprende na prática e faz os filmes em parceria, troca de gentilezas, que o coloca como o maior guerrilheiro sem armas do cinema brasileiro.

Na categoria de curta digital, Nello’s, de Andre Ristum, é um exercício de memória autobiográfica, tendo como protagonista um italiano de São Paulo, dono de restaurante, que viveu por dentro o cinema italiano. Fotos, cenas de filmes, anedotas. E um desfecho que, de modo quase chantagista, coloca o resultado no alto, de forma bem humorada, garantia de aplausos imediatos - como foi o caso. O curta faz parte de um projeto mais amplo da IôIô Filmes, produtora da qual fazia parte o diretor Esmir Filho, que abordará em documentários histórias de imigrantes.

Sintoma ou diagnóstico? Essa é a pergunta gerada por Teteco, do carioca Glauco Kuhnert, captado em celular dentro de um ônibus, no qual passageiro e cobrador trocam ataques verbais. O bate-boca tanto capta o aquecimento dos ânimos em uma grande cidade, quase resolvido à bala, mas também é sintomático de uma, digamos, perda de rigor do ponto de vista das imagens atuais, com tomadas de vários ângulos e de uma posição-imagem de câmera de segurança. Expõe uma situação das imagens contemporâneas amadoras, mas não a pensa dentro do curta. Já o cearense 6.5 megapixel tem como título a referência à câmera cujo roubo em Fortaleza, durante a filmagem de um curta, impediu as diretoras Micheline Helena, Gláucia Soares e Janaína de Paula de fazerem um filme de curso de realização. O que vemos é uma cartela; o que ouvimos é o áudio delas na delegacia durante o boletim de ocorrência. Aqui a ausência de imagem faz sua parte, viabilizando algo a partir de uma perda.

Finalmente, Eiffel, do jornalista e crítico pernambucano Luiz Joaquim, é, a um só tempo, uma homenagem a Os Incompreendidos, de François Truffaut, por meio de sua música-tema, e uma aproximação, de vários ângulos, de dois bizarros arranha-céus no Centro do Recife. O que se pode dizer é que a intenção crítica contida nas intenções, verbalizadas em debate pelo diretor, não estão nas imagens. Nem sempre apenas apontar a câmera resulta em construção. Toda a discussão é possível de ser colocada “a partir” do filme, mas em nenhum momento se dá por dentro dele. Cinefilia e cidadania nem sempre andam de mãos juntas, e, quando reunidas aqui, traem suas intenções e atenuam sua contundência. Um letreiro final tenta dar conta dessa ausência de relações e contextos internos.

Abril de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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