in loco - cobertura dos festivais
Mistéryos, de Beto Carminatti e Pedro Merege
(Brasil, 2008) por Eduardo Valente
Gosto
pela imagem
Para além de suas qualidades ou defeitos
específicos, que vamos tentar explorar mais na frente, o primeiro e maior elogio
necessário a este Mistéryos é sua presença como um OVNI no cinema brasileiro
– atual, principalmente, mas mesmo historicamente falando. Provavelmente precisamos
voltar dez anos até o Bocage de Djalma Limongi Batista para lembrar de
um filme que se estruturasse de maneira tão solta a partir de uma idéia de transformar
em imagens não apenas a obra, mas também o subtexto de um autor literário (aqui,
o paranaense Valêncio Xavier). Claro que ambos os filmes são tão diferentes como
podem ser um poeta português satírico e erótico do século XVIII e um contemporâneo
escritor curitibano, mas os aproxima tanto uma certa sensualidade latente (mais
comedida aqui, mas ainda assim bem forte) quanto principalmente um prazer pela
construção pictórica da cena que possui semelhanças fortes com os primeiros (e
mais interessantes) filmes do inglês Peter Greenaway. O
começo deste Mistéryos entusiasma bastante, com o passeio do alter-ego
de Valêncio interpretado por Carlos Vereza (nos créditos identificado como VX)
pelas ruas iluminadas pelo fotógrafo Alziro Barbosa a partir de uma unilateralidade
que busca um jogo de claros e escuros bastante radical. Ele presencia cenas insólitas
(uma mulher seminua que puxa o que parecia ser um ladrão para dentro da sua casa,
um homem fantasiado de gorila que mija num poste), até chegar na sua casa, onde
chama a sua atenção a imagem de três velas acesas, aparentemente suspensas no
ar, que servirão de mote para a ida e vinda de três narrativas bastante soltas
a partir da idéia do “mistério”, da irrupção do inexplicável na vida de alguns
personagens. A
primeira narrativa, a do sumiço de uma moça no trem-fantasma de um parque nos
anos 60 é a que ainda se move da maneira mais tradicional, trabalhando com a noção
de suspense e uma saudável brincadeira tanto com o cinema de gênero como com a
teatralidade e o falseamento da ficção cinematográfica. Stephany Britto e Leonardo
Miggiorin parecem incorporar as personas de seus personagens com bastante sucesso,
e há um sentimento bastante pronunciado de diversão, seja na retomada de uma certa
estética antiquada, seja na idéia mesmo de suspense e fantástico com que se deseja
brincar. No entanto, o uso constante de grafismos e desenhos entre as cenas, embora
remeta ao próprio trabalho de Xavier, bastante marcado pela visualidade mesmo
no formato do livro, atravanca um tanto o ritmo do filme. As
outras narrativas possuem um caráter cada vez mais etéreo, parecendo muito mais
com epifanias do personagem-narrador Xavier. Uma delas fala de um misterioso cineasta,
realizador de uma única obra nos anos 20, permite aos diretores tanto brincarem
com a forma ao reconstituir o que seria um tal filme erótico desta década (com
uma sensualidade marota bem interessante) quanto darem conta do papel histórico
que Xavier tem em Curitiba junto à Cinemateca local. Há ali o desejo de assumir
uma certa regionalidade (com referências ao que seria uma história do cinema paranaense)
que é bastante bem vinda, principalmente em se tratando de um estado e cidade
cujas identidades são bem menos marcadas no imaginário brasileiro. É
preciso que se diga que, ao longo de sua duração, Mistéryos perde um tanto
da força hipnótica do seu começo com o personagem que vaga pelas ruas e perscruta
a decoração da sua casa. Em parte pela (bela) trilha sonora e a narração em off
hiper-presentes, em parte pela sua estrutura episódica e alusiva, que exige dos
diretores uma certeza e domínio do tempo e da construção de cena que eles não
chegam a atingir de todo, Mistéryos não chega a poder ser afirmado como
um sucesso completo no seu resultado total. Mas, o que precisa ser dito é que
é uma tentativa inesperada e bastante instigante, que consegue momentos isolados
de grande potência – algo que, convenhamos, não se pode dizer de todo filme brasileiro
que vemos. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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