in loco
Dia 3: Certos olhares para a construção
do real
por Eduardo Valente
Quem acompanha esta cobertura todos os anos (ou pelo menos há
alguns anos) já não aguenta mais o que será dito a seguir, mas
eu peço desculpas e repito porque sempre tem gente nova chegando
– e, fora isso, é uma idéia que passa pela nossa cabeça toda vez
e não tem como não refleti-la na cobertura. O fato é que a ação
de ver na sequência uma série de filmes cria um curioso e inevitável
diálogo entre eles (mesmo que, por vezes, este resulte redutor
dos filmes e também despistador), algo que torna a experiência
de Cannes muitas vezes algo por que passamos como um grande filme
em várias partes. Não por acaso, aliás, os filmes são experimentados
aqui na maior parte das vezes de uma maneira como não seriam num
outro contexto, vistos separadamente quando entram em cartaz (e,
por isso mesmo, voltar a vários deles no futuro é mais do que
uma obrigação para o crítico). No entanto, nesta primeira leitura
feita aqui, no calor da hora, não tem jeito: os filmes conversam
mesmo: discutem, concordam por vezes, em muitas se confrontam.
Na maior parte das vezes, porém, é um processo que torna a experiência
total do Festival muito mais orgânica e interessante.
* * *
Mardi, après Noel (Marti, Dupa Craciun),
de Radu Muntean (Romênia, 2010) – Un Certain Regard
O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira (Portugal/Espanha/França/Brasil, 2010) – Un
Certain Regard
Nesta quinta, por exemplo, houve a abertura do
programa Un Certain Regard, que sempre foi visto um pouco como
a Série B da Seleção Oficial, mas que particularmente neste ano
conta com alguns antigos habitués da competição (Godard,
claro, mas também Jia Zhang-ke, Trapero, Hong Sang-soo, o próprio
Oliveira), além de outros que chamam bastante atenção mesmo sem
nunca ter estado competindo por aqui (Hideo Nakata, Cristi Puiu,
Lodge Kerrigan), resultando em uma companhia bem nobre para os
cineastas em começo de carreira que sempre marcam presença na
seção. Pois no meio deste amplo painel de opções, a escolha destes
dois filmes para o primeiro dia acabou criando um diálogo bem
curioso a partir de idéias sobre realismo e teatro que o cinema
carrega consigo quase desde que surge como linguagem.
Por
um lado, Marti, Dupa Craciun, embora não necessariamente
um filme melhor do que seus antecessores mais famosos (Sr.
Lazarescu, Polícia Adjetivo, 4 Meses..., A
Leste de Bucareste – todos, aliás, destaques a partir de Cannes),
parece marcar um ápice inultrapassável num processo de depuração
desta que parece ser a verdadeira obsessão deste chamado “novo
cinema romeno”: conseguir atingir pela ficção um sentimento de
realidade absoluta, de um registro “mosca na parede” que tenta
apagar todos os traços da sua construção como linguagem, para
registrar aqueles momentos pequenos do cotidiano das pessoas que
o cinema clássico de ficção costuma relegar ao chão do corte de
montagem. Pois Marti, Dupa Craciun atinge justamente o
cume deste sentimento, que certamente será o mais elogiado de
seus atributos: parece “a vida real”. Se esta é uma aspiração
justa e ou interessante para o cinema de ficção já será uma outra
longa (e insolúvel) discussão, mas é difícil alguém conseguir
negar esta capacidade impressionante do filme de Muntean.
Curioso, porém, que o filme que faça isso seja
o que tem, dentre todos os exemplares romenos recentes, a “historinha”
(se contada em duas linhas) mais reconhecível segundo todos os
clichês da narrativa clássica: homem se apaixona por mulher mais
nova, e precisa decidir se deixa ou não seu casamento de mais
de década e sua casa com mulher e filha de 10 anos. Portanto,
que Muntean (que, é importante, que se diga, já tinha 3 longas
anteriores no currículo) consiga injetar tal sentido de arejamento
numa estrutura tão reconhecida indica que há algum talento a mais
em trabalho aqui do que tão somente o de reprodução naturalista
do mundo. Muito desse talento vem de uma capacidade de reconhecimento
e recriação, via encenação, de alguns desses momentos de intimidade
entre as pessoas que o cinema tantas vezes pena por conseguir
mostrar. Ou seja, não falamos apenas de “a vida como ela é”, mas
principalmente da capacidade de retratar a evolução dos corpos
no espaço (um espaço cinematográfico muito bem pensado na fotografia
em scope) e, acima de tudo, no tempo (onde os planos longos
são, de novo, essenciais).
Mas
o principal atributo que talvez tenha sido pouco discutido nesta
nova geração de cineastas é a enorme capacidade deste verdadeiro
manancial de grandes atores que os filmes romenos têm revelado
– e, não por acaso, vários deles atravessam muitos dos filmes.
E é aí que a idéia de teatro, quase sempre usada no cinema para
falar de uma encenação artificial em termos de espaço ou de atuação,
precisa ser retomada e colocada em questão neste filme (e talvez
no cinema romeno recente como um todo – A Leste de Bucareste,
principalmente). Porque a maneira como Muntean organiza a cena
frente a câmera (embora ela não deixe de se mover), e como abre
espaço decisivo para a presença dos atores ser o lugar onde, finalmente,
o filme acontece ou não, aproxima muito tudo isso que ele faz
com tanta força, e que parece tão intrinsecamente cinematográfico,
do que de fato é essencial ao teatro – e ao melhor teatro. Voltaremos
a Marti, Dupa Craciun no futuro, porque é um filme que
pede o detalhamento de alguns de seus planos e operações narrativas
(como seu naturalismo acaba se aproximando de um outro sentido
totalmente do “filme de terror”, por exemplo), mas tudo isso funcionará
muito melhor quando o filme estiver podendo ser visto também pelo
leitor.
Por
enquanto, pegamos a idéia de teatro acima mencionada para fazer
a passagem para o novo filme do cineasta mais agé do mundo,
como diriam os franceses (porque nem velho nem antigo parecem
palavras que se deva usar ao falar de Manoel de Oliveira). Afinal,
as relações do cinema dele (e sua admiração pessoal confessa e
mais do que repetida) com o teatro são muito mais do que conhecidas,
e O Estranho Caso de Angélica reforça e aprofunda uma série
delas (principalmente no que se refere ao uso do espaço cênico
e da montagem deste para a câmera, mas também na dedicação profunda
à idéia de performance dos atores e do uso determinante da palavra).
Mas, seguindo no espírito do texto de abertura desta cobertura, talvez seja mais
interessante numa carreira tão longeva e plena de filmes como
a dele, nos atermos ao que ainda consegue nos surpreender do que
àquilo que reafirma procedimentos que já causaram nosso interesse
e admiração por seu cinema e que voltam aqui.
Nesse sentido, com certeza nada neste O Estranho
Caso de Angélica nos pega tão de calças curtas quanto o uso
efeitos visuais digitais em cenas cruciais do filme, que nem vale
a pena ficar aqui detalhando demais sob risco de cortar do futuro
espectador do filme o mesmo susto delicioso que pudemos sentir
ao vê-los na tela. Oliveira, afinal, sempre foi muito arredio
à idéia de filmar sonhos ou imaginação de seus personagens, afirmando
em mais de uma entrevista que não era para isso que o cinema se
prestava melhor, e sim para o retrato do mundo dos corpos e das
ações reais no espaço. No entanto, é curioso ver como o abraço
completo por ele destes artifícios aqui soa tão completamente
coerente com o projeto de visão do amor romântico, idealizado
e obsessivo iniciado lá em Francisca e Um Amor de Perdição
nos anos 70, ou ainda na retomada deste no seu filme mais recente
antes deste, o Singularidades de Uma Rapariga Loira, do
ano passado. Ou seja, Manoel de Oliveira parece mudar radicalmente
para continuar o mesmo, como muitos dos melhores cineastas longevos.
O
Estranho Caso de Angélica certamente tem seus pontos menos firmes (principalmente o diálogo
que junta Ana Maria Magalhães e Luis Miguel Cintra), mas ao mesmo
tempo recupera um sentido de encantamento pelo cinema que aproxima
Manoel de Oliveira, sempre tão lumiériano no seu cinema,
ao melhor de um Meliés. Encantamento este que passa pela crença
nada banal (e não por acaso o primeiro plano do filme traz em
destaque o escrito “FOTO GENIA” – assim em maiúsculas mesmo) de
que a captura da imagem é capaz de tudo, não apenas eternizando
pela captura aquilo que é fugidio, mas até mesmo trazendo de volta
à vida o espírito daquilo já morto. É um filme, em suma, que em
conjunto com o do romeno Radu Muntean, traça um panorama de possibilidades,
mesmo que com aproximações absolutamente opostas, de pensar a
colocação da câmera frente à realidade (em seu sentido mais amplo)
como algo capaz de atingir o sublime da experiência humana do
mundo. Não é pouca coisa para o começo deste
"certo olhar", que se inicia (BEM) mais instigante que
a própria competição.
Maio de 2010
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