in loco
Dia 1: Começando do zero
(Tournée)
por Eduardo Valente
Um dos motivos pelos
quais não houve um artigo sobre expectativas para Cannes este
ano é justamente o fato de que o grande diferencial em relação,
por exemplo, a 2009 (onde escrevíamos exatamente
o contrário) , é que há muito a ser surpreendido na
quantidade de filmes de estreantes nas várias seções do Festival,
ou ainda de cineastas que ou não filmam há algum tempo (Godard)
ou que sempre nos surpreendem mesmo que já tenhamos visto vários
de seus filmes (Apichatpong). Mesmo alguém de quem poderíamos
supor já saber exatamente o que esperar (penso aqui em Iñarritu,
por exemplo), vem com algum elemento novo (no caso, a ausência
do roteiro de Guillermo Arriaga) que pode fazer toda a diferença.
Ou seja: é um ano onde funciona, talvez mais do que todos os outros,
o desejo quase utópico da tábula rasa, de ver os filmes como se
fossem os ilustres desconhecidos que de fato são. Então, vamos
aos filmes, começando pelo primeiro dia mais light, onde pudemos
descansar mais dada a escolha por um filme já exibido no Brasil
(Robin Hood, que estréia aí na sexta) para a abertura.
* * *
Tournée,
de Mathieu Amalric (França, 2010) – Competição
É raro ver um filme que deixa tão evidente quanto
esse Tournée, mesmo enquanto se assiste a ele, cada um
dos seus elementos de motivação e o quanto estes são caros a ele.
Só que, ao mesmo tempo, o porquê o filme não consegue dar conta
exatamente de tudo que gostaria de conseguir atingir também ficava
dolorosamente claro ao longo de toda a projeção.
Amalric
monta aqui uma celebração (ainda que não sem dureza e melancolia)
da ideia de performance e da luta para escapar dos entraves mais
comezinhos da “vida normal”. Há uma idealização (de novo, ainda
que doída) da vida “on the road” de artista, mas acima de tudo
a partir da noção de trupe, de trabalho (e vida) em conjunto. Uma das boas
idéias do filme, ao buscar esta condição performática, é pensá-la
a partir do choque entre dois modelos bem distintos: de um lado,
encarnado no corpo do próprio Amalric, que interpreta um produtor/empresário,
a performance da atuação deste que é um dos maiores de sua geração
de atores; do outro lado, 5 mulheres e um homem que vêm da tradição
da performance musical teatral (mais especificamente de um movimento
chamado de “new burlesque”), que compõem os membros do grupo que
Amalric leva em turnê pela França no filme. Enquanto estes segundos
se apresentam para nós, mais do que atuam, Amalric está no ápice
da sua condição de “ator-ator” (às vezes tocando as raias da caricatura
de algumas coisas que já fez, principalmente para Despleschin).
Este
choque entre meios distintos de lidar com a performance fica claro
já nos créditos iniciais do filme, onde os 6 atores teatrais são
identificados por suas personas de palco, enquanto o nome de Amalric
surge tradicionalmente, como o do ator de cinema que é. Mas, infelizmente,
se a idéia é boa (aliás, ótima), conseguir compor estes dois estilos
distintos de espetáculo num mesmo filme se mostra uma missão maior
do que a capacidade de Amalric resolvê-la entre a filmagem e a
montagem. Resulta que muitas vezes parece que assistimos a dois
filmes, que apenas eventualmente conversam entre si – um, sobre
o personagem de Amalric, que leva a cenas de ação dramática e
questões psicológico-narrativas na medida em que o passado dele
vem à tona; e outro com o grupo de atores, que funcionam individualmente
apenas no palco, mas que fora dele acabam sendo caracterizados
como um grupo bastante homogêneo e pouco marcante. Pior ainda,
porém, é quando precisamos acreditar na interação entre os dois
lados do filme (como no caso da relação de atração-repulsa entre
Amalric e uma das performers), porque aí sim os dois estilos
de performance mais se chocam do que se entendem/complementam
– o que poderia ser interessante, mas o diretor não consegue fazer
do choque muito mais do que uma estranheza pouco instigante.
Não é por acaso que os artistas em tour
pela França são americanos: além do “new burlesque” ser típico
dos EUA, há aí toda uma herança de cinema com a qual Amalric dialoga,
que passa principalmente por Cassavetes e Altman (não por acaso,
os ecos mais próximos que sintamos são do Go Go Tales de
Ferrara, que já tinha muito dos dois – embora aqui seja o exato
oposto porque se briga pela possibilidade da excursão, enquanto
lá pela manutenção de um lugar fixo no mundo). Mas ao lidar com
sombras tão fortes, o que esta herança acaba ressaltando, mais
do que tudo, é o domínio extremo destes dois cineastas da forma
dos seus trabalhos com a câmera, os atores, os espaços. Pois se
de toda orquestração montada por Altman e Cassavetes (completamente
diversa nos dois, é bom que se diga) o que sobressaía era o sentimento
de uma fluidez extrema nas idas e vindas dos atores no espaço,
no drama, e da câmera ante eles, no filme de Amalric essa magia
(típica do melhor que o cinema consegue atingir) não se materializa,
e acabamos sentindo demais o desejo dele de nos conquistar para
a beleza do que se dá em frente a câmera – ao invés de simplesmente
sentirmos a beleza por si. Tanto assim que ele cai refém, por
exemplo, de algumas falas e situações explicativas que parecem
especialmente deslocadas no filme.
Maio de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|