Zodíaco (Zodiac), de David
Fincher (EUA, 2007) por Paulo Santos Lima
O fade como espelho do mundo A
filmografia de David Fincher até agora era adepta de histórias cínicas sobre o
cinismo do mundo, contadas cinicamente (não custa reforçar) por uma correnteza
de imagens de explosão nitroglicerinada. Imagens que, no seu grafismo quase pornográfico,
reluzente, sempre buscaram a clareza de sentido, portadoras de um conteúdo declarado,
cheio de certezas, e quase sempre costuradas por uma montagem também criadora
de sentidos muito confessos, muito transparentes. Agora, neste belíssimo Zodíaco,
Fincher opta pela opacidade, pelo rateamento de situações, com acontecimentos
espalhados pelo tempo diegético, avanço da história derretido pelas elipses, fatos
e certezas borrados pelas sombras. Um diagnóstico exasperante
e comprometido em registrar a genealogia do medo, do terror coletivo – que, aqui,
no caso, é provocado pelo serial killer, mas que parece eco também de uma
crise mais larga, institucional (o que remete ao Na Mira da Morte (68),
de Peter Bogdanovich, e Foi Deus Quem Mandou (76), de Peter Cohen, não
à toa obras dos anos 60-70, na pós-morte de JFK). Daí que o foco sai então das
entranhas mentais e carnais de um e outro personagens centrais (o workaholic
de Clube da Luta ou a mamãe e sua filhinha de O Quarto do Pânico,
por exemplo) para seguir por algo mais amplo – e não à toa o primeiro plano é
uma aérea pela cidade de onde surgirão os primeiros crimes relatados pelo filme.
Assim, se em Seven tínhamos o rosto do criminoso e seus crimes apresentados
com pinceladas selvagens na tela, e com alvo bem definido (o policial), a identidade
do serial killer de Zodíaco é instável, incerta, esboçada para ser
desmentida seqüências mais tarde. Não é só a certeza que não importa: a fonte
da ameaça também é desprezível ao filme, que se interessa pela cascata formada,
ou seja, pelos resultados macros e duradouros da ação do matador, que são muito
além das três seqüências de vitimizações físicas e diretas mostradas pelo filme. O
final de Zodíaco lembra muito o de Operação França (71), ambos abruptos
e maldizendo a resolução dos acontecimentos, sem a captura do traficante do filme
de Friedkin e tampouco a revelação clara da identidade do serial killer
Zodíaco no longa de David Fincher (na foto ao lado). Ambos são obras céticas quanto
ao poder das instituições, sempre ineficazes no projeto de saneamento. Os dois
são filmes anos 70, quanto ao imaginário que constroem pelas imagens: se o de
Friedkin é rodado naqueles anos, o de Fincher, mesmo contemporâneo, dialoga com
essa visão de mundo mais mordaz, típica de boa parte da produção daquela década,
além de ser ambientado em tal época. São fitas que diluem certezas, que deixam
como lição um cáustico juízo sobre as instituições, sobre a vida até, e, portanto,
tirando-nos o chão, deixando-nos em suspensão, até enegrecer a tela em momento
crucial: um fade que atenta contra um fluxo de ações, que golpeia nossas
expectativas e nos deixa órfãos de resposta. Quase abstrato,
tão invisível quanto sobrenatural, o Zodíaco é uma grande doença que contamina
a paz coletiva dos arredores californianos. Ao utilizar a imprensa para anunciar
seus crimes e lançar pistas para que descubram sua identidade móvel, sua mitificação
ganha poder astronáutico, pois se nem é certo que ele cometera os crimes que jurou
autoria, sua imagem midiática é um fato nas páginas dos jornais, telas de TV e
nos boletins policiais. Aqui, bem ao gosto de David Fincher, temos uma metralha
contra o sistema, que fabrica esses monstros imaginários e cria mecanismos de
proteção: diante da revelação do autor dos crimes, há a desconfirmação das digitais
por um perito alcoólatra, provas de menos para o sistema jurídico enquadrar o
suspeito, um oceano de armadilhas legais que travam as investigações, a dispersão
quando a mídia veicula uma novidade ou fricote enviados pelo suposto assassino. E,
sempre bom lembrar, é graças a um personagem, a alguém em princípio fictício,
cuja identidade é um apelido, que a população mergulha nesse estado de pânico,
desandada em frear a ameaça, em "lutar contra" – isso num momento diegético
do filme que fica entre o final dos anos 60 aos 80, ou seja, em meio ao Watergate
e à patetice militar no Vietnã. Mas, ainda que a redação do San Francisco Chronicle
muito relembre, não se trata aqui de um diálogo direto com Todos os Homens
do Presidente (76), uma vez que o filme de Alan J. Pakula acendia uma luz
sobre as trevas morais do país através da atuação exemplar da imprensa, ou pelo
menos no porto seguro ético da dupla de repórteres. Zodíaco é mais sombrio
justamente na abstração de um mal que, por si só, também parece criação folclórica.
O mal estaria, daí, menos nos seus supostos atos do que no estado de espírito
de toda uma legião de gentes. Zodíaco,
portanto, mais que onipresente, é onipotente: uma força aflitiva que empurra muitos
ao buraco da ruína. E é justamente nesse processo autodestrutivo que o filme de
David Fincher confirma recorrências e suas negações aos traços autorais do cineasta,
resultando num exercício cinematográfico não menos que invulgar. Se há o frenesi
psiquê dos personagens, e seus medos dramáticos, o filme opta pelo que está acerca
disso. Assim, ele fica em cerca de seus 2/3 de duração olhando a estrutura do
estado de coisas, detectando o pino puxado da granada (via cenas de crime explícito)
para então mostrar seus estilhaços fazendo amplo estrago, no trecho epílogo sua
atenção ficará naqueles que continuam, anos a fio, a seguir os rastros fantasmas
do Zodíaco. Alguns tombam antes, como Paul Avery (Robert Downey Jr), repórter
que afunda nas drogas junto à mitificação e longevidade do serial killer. Outros
"desertam", como o parceiro do inspetor David Toschi (Mark Ruffalo),
que por sua vez segue meio combalido na caçada. Outro mais obstinado, o chargista
do San Francisco Chronicle, Robert Graysmith (Jake Gyllenhal), que por conta própria
assume as investigações, até detectando, como Toschi, um certeiro culpado. Todos
eles, sem exceção, feridos na batalha: Graysmith perde o amor da esposa e sangra
existencialmente. Essa lógica narrativa que parte da apresentação
do problema ao seu espraiamento onipresente é devidamente vertido em imagens.
Retornamos, aqui, ao fade. Recurso sutilmente utilizado por Fincher, a
tela escurecida sugere notavelmente uma agonia geral, de ações e avanço da história,
de rateio mesmo. Tomemos o exemplo do momento crucial em que o assassino ameaça
mãe e seu bebê que pegaram carona com ele: tela escurece + som desaparece / trilha
tensa + imagem de um caminhão atravessado na pista e a mãe gritando / planos mostram-na
histérica, gritando a pessoas perplexas, até descobrirmos que ela saltou com seu
bebezinho do carro. O fade nos tira o chão para depois nos devolver a ele
meio perdidos, pisando com um só pé. E é Fincher resgatando o fade de sua
primeira função (no cinema clássico, como recurso para elipses temporais e espaciais)
para criar o sentido de perenidade, de defeito irremediável do mundo. Assim,
Fincher não se coloca como um reles manipulador de sensações, algo possível a
qualquer diretor habilidoso (e ele sempre o fora, não tenho dúvida). Fincher,
com seu filme, funde-se ao esperto Zodíaco, contamina-se, e até pega a mesma doença
dos personagens da história. Adota uma narrativa ágil que é também igualmente
moribunda, mareada em seu fluxo vaporizado, e vai, como o serial killer,
em onipotência plena como narrador-autor do filme, eliminando os personagens que
tombam pelo caminho. Não só os mortos, mas o Avery que antes era o mais reluzente
personagem do filme e que, agora, arruinado pelas drogas, ganha sua última imagem
num bar, alquebrado e refém de um aparelho de oxigênio. Ou o tal ajudante do tira
Toschi, que prefere a segurança da casa e sai de cena como um zé ninguém. Ou como
Graysmith, que tem seu empenho apagado pelo plano final, com cartela contando
sobre a impossibilidade de se identificar o autor dos assassinatos. Assim
como o avanço de um fade vai tirando uma imagem da tela, tudo que há de
espetacular num thriller, com suas investigações, reviravoltas e revelações (como
em Seven e na pegadinha da real identidade de Edward Norton em Clube
da Luta), vai se evaporando com o avançar de Zodíaco. Nem mesmo os
valiosos personagens têm suas presenças poupadas no plano. Eles são imagens apagadas,
tão instáveis quanto a identidade volátil do Zodíaco. E é nessa incerteza com
a qual o filme de Fincher trabalha que faz de Zodíaco um diagnóstico do
mundo contemporâneo, este que parte da volatilidade das coisas para propagar certezas
incertas, mentiras verdadeiras, Iraques, mensalões e outros quinhentos falaciosos.
Fades que, fora do cinema, fora da beleza estética de Zodíaco, se
fazem tempestades medonhas, céus escurecidos. editoria@revistacinetica.com.br
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