Estrada para Ythaca,
de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes (Brasil,
2010)
por Fábio Andrade
Entrando
em movimento
O filme dos irmãos Pretti e dos primos Parente (como assinam na
tela) se equilibra em uma construção que parte de um sentimento
paradoxal da arte frente ao mundo, e o fato de os diretores serem
os próprios atores gera uma camada a mais neste processo, que
abre um duplo dentro da própria encenação: capturar os sentimentos
das personagens, mas deixando que a filmagem seja regida por sentimentos
que são opostos aos vividos por elas no filme. Pois Estrada
para Ythaca parte de um evento triste (as quatro personagens
principais tomam a estrada para tentar superar a morte de um amigo),
mas opta por filmar esse processo de recuperação com visível alegria.
Os diretores chegam a um filme de tom peculiaríssimo justamente
por essa contraposição que se dá dentro do plano, onde a melancolia
nunca é só melancolia, o humor nunca é só humor, e o sentimento
emanado do filme vem justamente dessa fricção, desse paradoxo
produzido.
“O
fracasso lhe subiu a cabeça”, diz uma das personagens. Estrada
Para Ythaca é feito dessas pequenas inversões que, no filme,
são atingidas por essa inadequação entre o olhar e a ação, não
muito distante em tom (embora completamente diferente em todos
os outros aspectos) da alegria triste do cinema de Wes Anderson,
Aki Kaurismaki ou Roy Andersson. Essa idéia de paradoxo se dá,
também, em aspectos formais. Estrada Para Ythaca dedica
enquadramentos de grande sobriedade e rigor para situações muitas
vezes encenadas de forma esdrúxula e alucinada. Há, por exemplo,
uma estranheza nas opções de enquadramento do filme que parece
vir da convivência de um rigor visual bastante claro com a incorporação
de supostas “imperfeições” – como um excesso de teto quase sempre
constante que privilegia um espaço grande acima das cabeças das
personagens, sem com isso gerar um sentido que vá além do estranhamento
visual.
O esgarçamento da duração dos planos vem dentro
desse recorte, onde o banal é feito iconográfico e o iconográfico,
banal – como a citação de Glauber Rocha em Vento do Leste,
de Jean-luc Godard, ou mesmo a opção por manter, na montagem final,
um plano em que os atores quase derrubam ao chão a câmera que
faz a filmagem. À exceção de uma sequência de choro mais clara,
a melancolia é filmada em uma troca de pneus, uma refeição à beira
de estrada, uma dança ritualística e patética frente os faróis
do carro. Essa banalidade é aliada a uma dose providencial de
irreverência, que faz com que assistir Estrada para Ythaca
seja uma experiência sempre curiosamente leve, entretida em
si mesmo.
É
interessante também que, mesmo realizado no muque, Estrada
para Ythaca nunca se torna um filme de processo. A força das
situações vem, em grande medida, da consciência plena dos diretores
de o que elas deveriam significar internamente (mesmo que o significado
venha com a intenção de confundir), e de como cada cena se relaciona
com o todo. Isso pode ser visto tanto na consciência bastante
clara de como a câmera deve se relacionar com as personagens,
quanto na opção em realizar o filme com dois formatos de tela
diferente. O aspecto físico do cinema ganha, ali, sentidos de
construção definidos, onde a tela parece se alargar ou se estreitar
a partir do que ela está filmando, consciente de como esse aspecto
material pode potencializar as sensações que o universo construído
deve emanar: o enquadramento primordial em 1.33:1 ressalta um
isolamento das personagens na paisagem, enquanto os momentos em
1.77:1 abrem a panorâmica para o mundo e o que está ao redor das
personagens.
Mas existe, também, um lado problemático
nessa consciência cinefílica que por vezes parece desnortear Estrada
para Ythaca. Pois há, no filme, uma preocupação pontual, mas
ainda assim reveladora, de se situar com excessiva consciência
dentro da história do cinema, que por vezes parece mais forte
do que a dedicação em criar uma obra de impacto autônomo. Esse
sentimento de orfandade cinematográfica (o amigo morto é o mesmo
que reaparece como Glauber, apontando os caminhos do cinema de
aventura e do desconhecido, e do cinema do terceiro mundo, divino
e maravilhoso) é o que move as quatro personagens/diretores em
suas jornadas pessoais de cinema – e aí é muito revelador que,
embora essas jornadas sejam filmadas separadamente, sem grande
interação entre os protagonistas, ao fim eles aparecem reunidos
no quadro e no cinema, o que dá um forte aspecto de “carta de
intenções” a Ythaca. Essa preocupação é problemática na
medida em que ela se torna fim, e parece colocar o raciocínio
crítico e historiográfico à frente da sensibilidade artística,
na tessitura de cada plano, na possibilidade de criar uma obra
mais propriamente desestabilizadora. O que existe é mais uma afirmação
para dentro, algo que já acontecia, em maior escala, em Longa
Vida ao Cinema Cearense, dos irmãos Pretti, e que entra pelas
frestas de Estrada para Ythaca, por vezes desmentindo a
citação final de que, na viagem, o caminho era mais importante
que o destino. Estrada para Ythaca funciona como um bom
impulso, um necessário empurrão que dá início ao movimento, e
deixa a sensação de que filmes menos comprometidos virão quando
os realizadores, mesmo se encontrando ao longo do caminho, forem
em busca de Ythacas particulares, uma diferente para cada um deles.
Janeiro de 2010
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