XXY
(idem), de Lucia Puenzo (Argentina/França, 2007)
por Luiz Soares Júnior Encarcerada
em seu próprio filme
A
cada vez que nos é apresentado um plano de Alex, jovem de características sexuais
indefinidas que mora com os pais argentinos numa isolada ilha uruguaia, temos
introduzida, por um movimento de câmera ou da entrada no plano propriamente dita,
a presença de alguém que a observa ou a recolocação do plano médio em um plano
amplo no qual a sua ação se situa, adquirindo um contexto, uma relevância.
Assim,
por exemplo, do lado de dentro da janela da casa temos um plano à distância da
menina brincando à beira-mar; logo, este plano é tomado pela figura do pai, vindo
pela direita, que observa preocupado o desenrolar da amizade da filha com Álvaro,
filho de um médico convidado por sua mãe para se hospedar com eles. A descoberta
de mundo por uma experiência virgem, que o filme a princípio parece disposto a
descrever – a partir de uma montagem seca e de uma deambulação constante da câmera
pelo espaço aberto da ilha – é constantemente frustrada por esta limitação de
foco, esta sujeição da experiência de Alex ao olhar de um personagem exterior
à cena, que vem para julgar a ação. O plano de ação do personagem é frequentemente
bloqueado por uma outra figura, pai, mãe, colega de brincadeiras de sexo oposto,
médico amigo da família. De alguma forma, figuras representativas de uma dimensão
de controle, que nos induzem, durante o filme, a reverter constantemente o ponto
de vista da protagonista em prol de um ponto privilegiado, não mais de “vista”
– de juvenil, anódina experiência-, mas de poder. No
filme de Lucia Puenzo, “Alex, a diferente” se torna o objeto de uma ampla malha
de julgamento, que começa no jogo do plano e contraplano, mas logo se estende
à construção narrativa propriamente. O que a princípio nos parecera um mergulho
fenomenológico numa experiência de exílio adolescente se transforma numa metódica,
acadêmica e dramaticamente irrelevante enumeração das cadeias que transformam
a vida de todo OVNI – seja um transexual, um intelectual ou um artista – num inferno:
temos, assim, o ponto de vista dos pais, do médico, das pessoas em volta como
a baliza que sustenta o filme, a partir de então. Basicamente,
a cena que marca esta mudança infeliz de foco é quando Alex deseja afirmar de
forma, digamos assim, mais “ativa” o seu desejo (e assim, ultrapassar o limite
do plano restrito imposto a ela pelo olhar do outro), e acaba comendo o filho
do casal amigo da mãe. É sintomático que nesta cena, o pai da moça, que flagra
o casal transando, não “adentre” o plano propriamente dito, mas fique circunscrito
ao jogo do plano e contraplano, isolado e impassível espectador da ação na qual
a filha, pela primeira vez, desempenha um papel absoluto, não atrofiado pela irrupção
de outro personagem na cena. Daí em diante, o filme retrocede: deixa de lado a
percepção e se concentra no discurso. Para isto, recorre à parafernália de estratégias
chulas, típicas de uma mascarada ideológica: o que fazer de Alex, agora que parece
querer virar homem? Alex
é jogado numa arena onde vários mecanismos de dramatização lutam entre si para
cooptar sua experiência, enquadrá-la num conceito e numa modalidade de encenação
que perfaz a velha “história bem contada e dramatizada” do espectador médio. Deixa
de ser um olho aberto no mistério do mundo, como todo grande filme deve ser, para
se tornar a pedra de toque de uma concorrência desleal entre diferentes – mas
nem tanto – táticas emotivas para se contar uma história, a sua história: entram
em cena os pais e sua bovinidade, o médico amigo e sua opacidade, “Alex, a transexual”,
representada agora por desenhos infantis perversos e bonequinhas com pinto que
denotam o caráter doentio da personagem. A ambigüidade e
amplitude do foco, proporcionadas pelo olhar da protagonista, são substituídas
por uma construção mais fechada, determinista, tecida por personagens-tipo, situações-tipo,
atmosferas-tipo, todos com funções precisamente delimitadas, adequadas à consecução
de um melodrama. Assim, o pai de Alex vai procurar um mecânico que passara pelo
mesmo “drama” atravessado pela menina, a fim de poder se basear num modelo prévio
de construção dramática, numa “experiência” anterior (e exterior), que vai se
superpor à experiência de sua filha, deixando-a em segundo plano; da mesma forma,
Lucia Puenzo apropria-se de modelos convencionais de representação “deste tipo
de história”, deste tipo de “drama”. Supondo-se, é claro, que esta vivência constitua
realmente um dado traumático, “dramático” para a personagem. Mas
a protagonista já não importa, foi deixada de lado: o “drama” a que assistimos
agora é efeito das expectativas sociais que sobem à cena, e dos personagens encarregados
de assumi-las; e não um prolongamento/aprofundamento da descoberta existencial
de Alex, como mostrado no início do filme. São estes papéis e funções sociais
definidas, correlatos a modelos de encenação academicistas, que o filme se empenha
em mostrar. Perdemos o mistério da personagem e, com ela, toda possibilidade de
acesso a uma visão idiossincrática e vital. Março
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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