pariscópio
Frederick Wiseman: interferências
no real
por Leonardo Sette
"(...) O tipo de documentários
que faço só é possível através da descoberta de aspectos banais,
cômicos, trágicos, da nossa existência cotidiana e por sua organização
dramática. Um escritor teria que ter uma imaginação incrível para
inventar os diálogos e a ação de uma cena como (por exemplo) a do
rapaz que vomita em Hospital". (Entrevista à François Niney
- Catálogo da retrospectiva Frederick Wiseman - Bibliothèque Centre
Pompidou, novembro 2006)
O
que acontece com você quando alguém lhe aponta uma câmera ? Depende.
Se você estiver completamente bêbado – de álcool, de tensão, de
desespero ou de mescalina, como o rapaz de Hospital (1970)
citado por Wiseman, há uma bela possibilidade de que a câmera lhe
desperte pouco interesse. Mas, e se você é uma ambiciosa funcionária
de uma fantástica loja de departamentos (The Store, 1983
- foto acima), filmada em pleno expediente profissional? Ou ainda:
como reage um ator a uma câmera que o filma nos bastidores de sua
companhia de teatro (La Comédie Française ou l'Amour Joué, 1996)?
Uma das coisas mais comuns
numa conversa sobre o cinema de Frederick Wiseman é discutir se
a presença da câmera influencia o comportamento das pessoas filmadas.
Outra, é reclamar que seus filmes iludem o espectador insinuando
que o que está na tela é a verdade. A questão mais séria,
certamente, é a segunda. Se filmes como os de Fred Wiseman podem
fazer alguém crer que está vendo o real, o problema não está
nos filmes. Se alguém que sabe detectar aspectos tendenciosos em
um texto de jornal, por exemplo, não é capaz de considerar a presença
do que está fora de quadro na imagem (nesse caso, a câmera), se
esse espectador precisa ver um microfone ou alguém da equipe de
filmagem para lembrar que isso existe e lá está, falta-lhe evidentemente
um posicionamento reflexivo e alerta diante da imagem.
Nada impede a observação de que os filmes de Wiseman representam,
tanto quanto os de Eduardo Coutinho, encontros de uma equipe de
filmagem com as pessoas retratadas. A diferença, nesse aspecto,
reduz-se praticamente a uma simples questão de presença no quadro
– observando, lamentavelmente, que a noção do "fora de quadro"
como elemento de linguagem permanece subdesenvolvida no cinema,
na televisão e na própria percepção do público. É possível inclusive
que somente o francês tenha uma expressão autônoma e sintética ("hors
champ"), de fato cunhada para designá-la. Seja como for,
o aspecto mais interessante dessa questão é que, no cinema de Wiseman,
elementos como as ausências da voz off e de pessoas se dirigindo
à câmera resultam em painéis compostos de fragmentos romanescos,
extraídos diretamente do mundo real.
A cena a que Wiseman se refere na citação inicial do texto (onde
um jovem estudante nova-iorquino chega ao hospital apavorado, arrependido
e entorpecido de mescalina) faz o público rir muito – e, não somente
por isso, poderia perfeitamente estar num filme de Woody Allen.
Nesse caso, é evidente que a ação não guardaria a mesma natureza
retórica, já que em Wiseman o espectador, por saber que não está
vendo ficção, ri nervoso. Estaríamos então mais próximos do Cassavetes
de Husbands (1970) do que de Allen. Ou ainda de um filme
como o romeno A morte do Sr. Lazarescu (2005), de
Cristi Puiu – que poderia facilmente ser um documentário
de Wiseman, não fosse sua ação narrativa que gira cronologicamente
em torno de um só personagem.
Esse sim é um caso em que pode vir a ser muito interessante questionar
o quanto da presença da câmera de Wiseman há, por exemplo, no exemplar
comportamento dos enfermeiros e médicos que atendem o estudante
drogado em Hospital. Não para julgar o nível de "veracidade"
do cinema de Wiseman, mas para dar prosseguimento a uma continua
reflexão sobre as formas cinematográficas, relacionando, nesse caso,
o fator fake dos personagens do documentário de Wiseman em
oposição à forte sensação de realismo que surge da insensibilidade
e grosseria dos médicos da ficção de Puiu.
É
curioso, neste sentido, que apesar de tantos indícios, as experiências
de Wiseman em ficção se resumam a um tímido flerte com o teatro
e apenas dois filmes. Um deles, Seraphita’s Diary (1980 -
ao lado), é de fato uma prolongação de seu trabalho documental:
a super modelo Apollonia Von Raffenstein – uma das "personagens"
de Model (1980) - "interpreta" a também modelo
Seraphita, uma mulher incapaz de lidar com o impacto de sua beleza.
Um dia, Seraphita desaparece. O filme tenta desenhar suas paisagens
emocionais, por meio da impressão deixada em outras pessoas, através
de passagens de seu diário. Nesse filme, Wiseman parece interessado
em realizar algo como um documentário psicológico da modelo como
instituição, valendo-se da ficção como utensílio oportuno, mais
apropriado para concretizar as imagens que seu sistema fílmico habitual
poderia somente insinuar.
Por
sua vez, a encenação de Happy Days na Comédie Française decepciona
como obra, mas fornece pistas sobre a relação de Wiseman com ficção.
No texto de Beckett, Winnie (Catherine Samie) desperta ao amanhecer
para mais um dia de existência, sem perturbar-se com o fato de estar
enterrada com areia até o peito. Diante da indiferença e da impossibilidade
de diálogo com seu companheiro Willie – interpretado pelo próprio
Wiseman – Winnie monologará até o anoitecer com graciosa inocência,
como num dia ordinário, recolhendo objetos, penteando-se, reclamando,
relembrando... É difícil saber se Wiseman intimidou-se diante do
texto ou se faltou-lhe talento especificamente teatral. O fato é
que em sua encenação, luz, cenário, sons e figurino sobram como
ornamentos dispensáveis, formando ilustrações literais do texto,
a tal ponto que até mesmo a atuação da formidável atriz Catherine
Samie se encurrala na declamação, na mimetização do texto. Um espetáculo
de grande inocência cênica, no qual reina a falta de imaginação
e de entusiasmo pelas possibilidades da linguagem teatral.
Felizmente,
em A Última Carta (2001) ocorre o inverso. Na origem
do projeto, há também um espetáculo teatral: monólogo com a mesma
Catherine Samie, encenado também na Comédie Française. Mas
se, em Happy Days, Wiseman, interessado quase que somente
no texto de Beckett, parece bocejar diante do teatro, em A Última
Carta os olhos do cineasta brilham e o resultado é um filme
delicado, original e tocante. O texto é o capítulo 17 do romance
Vida e Destino, de Vassili Grossman, no qual Anna Semionovna,
médica russa e judia, encontra-se refém dos nazistas numa pequena
cidade da Ucrânia. Ao compreender que será exterminada, ela escreve
uma avassaladora última carta para seu único filho, consciente de
que nunca voltará a vê-lo.
Num
palco vazio, Wiseman filma Catherine Samie em silencioso vestido
negro, ornado apenas pela estrela de David colada no peito – sombria
"Letra Escarlate" da guerra de Hitler. Wiseman parte desse
ponto zero, adicionando somente projetores de luz alinhados de forma
concêntrica, criando simultâneas sombras na parede que dançam embaladas
por delicados travellings laterais e definem esse réquiem
expressionista em que Catherine Samie transforma Nosferatu em vítima
do horror nazi-caligariano, que por sua vez condena Anna Semionovna
a ter seu rosto filmado como a Joana d'Arc de Dreyer. Em A Última
Carta Wiseman sela e celebra lindamente sua relação com o cinema
em seu sentido mais primitivo (e ao mesmo tempo amplo), ultrapassando
a segregação dos gêneros e afirmando-se de forma natural e coerente
como homem de cinema, realizador de filmes.
O cineasta Wiseman imprime em A Última Carta um duplo e inverso
movimento poético, de intensidades bem diferentes. Se a tragédia
das vítimas do Holocausto é implacável e impassível de redenção,
o diretor se lança em utopia, e encarrilha um projeto de sublimação
cinematográfica em sentido contrário ao funeral da médica Semionovna,
levando a mão ao ombro do espectador que acompanha o cortejo e divide
com ela o peso do horror do século, elemento de real que
anima essa ficção Wisemaniana.
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