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Frederick Wiseman: Exaustão e utopia
por André Brasil - colaboração para a Cinética

É preciso confessar: acompanhar uma retrospectiva de Frederick Wiseman vai tornando-se, filme a filme, uma tarefa árida, quase ingrata. A cada sessão, nos aproximamos do limite da exaustão. Não, definitivamente, isso não se deve à longa duração de seus filmes (nada muito exagerado, tendo em vista o engajamento que nos solicitam). Nem à sua extrema economia discursiva. Trata-se, antes de tudo, de se haver com um projeto ambicioso, persistente e paciente de cartografia.  Projeto no qual se investe toda uma vida e que visa, finalmente, descrever, uma a uma, as instituições que informam o “sistema vital” e a mentalidade dos Estados Unidos, em sua delirante racionalidade.

Entre Titicut Follies (1967 - acima) e Domestic Violence 2 (2003), foram mais de 30 documentários, nos quais a câmera de Wiseman interage (o termo é proposital) com o espaço, o tempo, os corpos, as leis e os poderes institucionais: da prisão ao monastério, da escola à polícia, do exército à moda, do laboratório científico ao zoológico, do comércio à arte. Algo, portanto, que nos seduziria a comparar esse ao projeto não menos grandioso de Michel Foucault.

Mas, deixemos logo essa aproximação apressada de lado. O que parece nos exaurir nos filmes de Wiseman é a maneira impiedosa, cruel às vezes, como eles nos mostram a submissão dos indivíduos aos poderes normativos. Grandes e complexas máquinas burocráticas, que obedecem a uma lógica autônoma e que se auto-justificam. Racionalidades diante das quais crianças, adolescentes, homens, mulheres, animais não podem mais do que se exaurir. E diante das quais, o espectador é tomado por um inegável sentimento de impotência.

Mais um dia de mostra. Quero não ir, mas o que me leva novamente ao cinema?

Segundo Giorgio Agamben, o homem moderno foi sendo, gradativamente, expropriado de seus gestos. Do flâneur que perambula ao soldado que marcha, o gesto se torna mecânico, disciplinado, funcional. Abstrai-se a ponto de não mais nos pertencer. Em sua extrema previsibilidade, transforma-se em algo que não é mais um gesto, mas uma operação.

Distinguindo-se do fazer  – um meio com vistas a um fim – e do agir – um fim na ausência de um meio, o gesto é manerie, nos diz Agamben. O termo deriva de manere e se refere a uma “maneira emergente. Esta seria, portanto, a aparição do ser assim, em sua eventualidade e indeterminação. Assim, sem mais nem menos, o gesto se cria e se experimenta a si mesmo, situando-se entre a pura possibilidade e sua atualização circunstancial, imprevisível, inadequada. Um meio que não possui outra finalidade que sua própria aparição. “Uma época que perdeu seus gestos é, por essa razão, obcecada por eles.” E o cinema é a resposta moderna a essa perda. Por isso, para Agamben, o fundamento do cinema é menos a imagem do que o gesto.

Concordamos com ele e, então, devemos desconfiar do que havíamos dito antes: talvez, o interesse último dos filmes de Wiseman não seja a máquina institucional. Talvez, o que essa minuciosa cartografia nos ofereça seja uma perda, um processo progressivo de rarefação. O rigor metodológico e a economia fílmica que caracterizam sua obra não conseguem superar a tensão que habita toda imagem: apreender o gesto significa, no mesmo momento, perdê-lo. Ou, invertendo os termos: a imagem é o que fixa, congela, reifica o gesto, para poder nos devolvê-lo, nos oferecer sua efêmera emergência (acima, Welfare).

Ao enfrentar essa contradição, Wiseman seria, portanto, menos um cartógrafo do que um sismólogo: aquele capaz de perceber os estremecimentos que se produzem numa paisagem aparentemente estéril, homogênea. Para além da ortodoxia do método, a força dos documentários de Wiseman está na câmera intuitiva e em sua escuta atenta. Se o cartógrafo pode retraçar o mundo na proteção do seu estúdio, o sismólogo precisa saber lidar com a contingência, transitando entre pequenas percepções.

Diante desses espaços institucionais impermeáveis ao gesto – ou melhor, que visam mesmo sua normalização – Wiseman cria um espaço fílmico (uma escritura, que, vale dizer, não tem nada de “direta”): este se forma entre as escolhas circunstanciais no momento de filmagem e as opções muito bem pensadas no momento da montagem. É nesse espaço fílmico que o documentarista atua e que o gesto emerge: sutil, silencioso, discreto, nervoso, dissimulado, agudo. É também nesse espaço que um ou outro personagem se esboça, uma ou outra singularidade se descola levemente, sem, no entanto, chegar a ser uma identidade.

O cineasta cria sua obra no intervalo mínimo entre o gesto que escapa e o que restou na imagem. Os momentos mais reveladores dos filmes de Wiseman são aqueles em que, nesse intervalo, a câmera – a única – hesita: fazer o zoom ou permanecer distante? Apreender um detalhe ou enquadrar o todo? Acompanhar este ou aquele personagem, suportar o plano ou interrompê-lo? Trata-se, então, não apenas de construir o espaço fílmico mas de, tateante, descobrir como se posicionar nele, a que distância, por quanto tempo. Questão cinematográfica por excelência. Questão ética, que, nos documentários de Wiseman, nos parece ainda mais urgente. Se a utopia diz respeito ao espaço, hoje, sabemos, este não deve ser o espaço idealizado, projetivo, abstrato. Utópico é o espaço atravessado por forças, corpos, discursos e subjetividades.  Espaço da experiência e da linguagem, aberto ao gesto.

Sim, é verdade, os filmes de Fred Wiseman nos deixam exaustos, porque nos levam ao limite da impotência e da descrença, se aproximam de um território abandonado que se costuma chamar de “pós-utópico”. Mas, eis que, para além de toda expectativa, a hesitação da câmera nos devolve o gesto do cineasta.

Três cenas, uma gag

Titicut Follies (1967): no primeiro filme do diretor, sobre a prisão de Bridgewater (Massachusetts), reservada aos detentos com distúrbios mentais: um plano detalhe mostra a mão de um funcionário, que faz a barba do preso. A navalha vai e volta, lenta, na pele enrugada. A voz do funcionário, entre amigável e ameaçadora, pergunta porque ele não está mantendo a cela limpa e se vai passar a fazê-lo nos próximos dias. A cena resume a complexa relação entre policiais, médicos, psicólogos e detentos: quase sempre no limite tênue entre o cuidado e a perversidade.

Law and Order (1969): um jovem briga na rua com a ex-esposa, desejoso de ver o filho, o qual, segundo explica aos policiais, não pode visitar há algum tempo. Os policiais fazem a mediação da discussão e aconselham o jovem a procurar um advogado. Ele argumenta, se desespera. “Entendo seu problema, mas é assim, é a América”, o policial parece responder. Não há ali elementos para julgar. Não há como decidir quem tem razão. Não é o caso. Na verdade, estão todos submetidos a uma ordem que os ultrapassa. “That’s America.” O jovem argumenta um pouco mais até dar conta de sua impotência. Ele corre e a câmera o acompanha por um tempo.

High School I (1968): após a cena de um sermão do diretor, que censura a aluna de mini-saia, somos levados ao corredor da escola, vazio. Ao fundo, a figura de outra menina, solitária, pensativa.

Basic Training (1971), um oficial ensina um soldado a marchar. O jovem tenta, se esforça, mas aqueles gestos não são os dele. Não pertencem ao seu corpo franzino, que parecem mal suportar os óculos. Ele volta ao pelotão e sua performance desajeitada se destoa, apesar dos berros insistentes do oficial. Um Jerry Lewis inesperado atravessa o documentário.

O gesto é essa gag, nos diz Agamben. Esse lapso que nos revela seres de linguagem: marcam um descontrole, uma suspensão, uma impossibilidade: de julgar, de falar, de marchar corretamente.

Sim. Ainda se trata de um cinema utópico. Mas, não nos enganemos, a utopia é um lugar difícil, raro, que menos se projeta do que se entrevê. Às vezes, ela se vislumbra em um momento de insuportável exaustão. Em outras, ela tem lá a sua graça.


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