A Fita Branca (Das Weisse Band), de Michael Haneke (Áustria/Alemanha/França/Itália, 2009)
por Fábio Andrade

Ninho de monstros

The White Ribbon tem uma premissa que faz lembrar, imediatamente, A Vila, de M. Night Shyamalan. Uma cidade bucólica tem sua ordem atormentada por uma série de atos premeditados de violência, de autor desconhecido. A narração em off, de um professor da cidade – que soa bem mais velho do que sua personagem em tela – confere ao filme um tom de rememoração, como se aqueles incidentes fossem um momento de transformação para as vidas das pessoas daquela cidade. Não muito diferente do filme de Shyamalan, a violência é o marco de falência de uma estrutura comunitária. É isso que o filme de Michael Haneke tem como principal preocupação. A fita branca do título continuava sendo amarrada às crianças, para que elas sempre se lembrassem de um compromisso com a pureza. The White Ribbon é sobre o momento em que, apesar da fita continuar lá (a aparência), a pureza real se perde por completo. É um filme sobre a descoberta do mal.

O que fazia de A Vila um filme notável era a presença de uma personagem que não se deixava amedrontar por esse reconhecimento do mal, e que transgredia os limites do falso conforto para o reconhecimento de um mundo mais amplo, e de paleta mais gradual de sentimentos. A questão do "bem e o mal" era trocada pelo "eu e o outro", restaurando o que essa troca de conhecimento tem de mais puro e produtivo. Esse salto não será dado em The White Ribbon: a comunidade se volta completamente para si com a chegada da guerra e, mesmo com suas perversões, a ordem que a rege é mantida. Ao não oferecer qualquer forma de resistência, Michael Haneke faz um filme de aspirações conservadoras, naquilo que a palavra tem de significado essencial: conservar um certo estado, a despeito de seus problemas. The White Ribbon usa a ficção – a fita branca que tem a aparência de pureza – para desvelar a falência de uma estrutura comunitária, sem vislumbrar qualquer caminho ou solução. Em seu niilismo, se torna um filme reacionário.

Essa lógica da cidade como produtora de monstros não é nova, e já rendeu filmes extraordinários. De Sob o Domínio do Medo, de Peckinpah, a Assalto ao 13o Distrito, de John Carpenter (que, lembremos, era uma refilmagem de Rio Bravo), o surgimento abrupto do mal como produto incompreensível e inevitável de uma organização social foi uma questão especialmente forte pro cinema pós-1968, muitas vezes assumindo uma face única, de incontornável presença física (caso de Halloween, do próprio Carpenter; ou de Don't Look Now, de Nicolas Roeg). O que todos esses filmes ofereciam, para além da constatação desse mal, era uma forma de resistência que tentava restaurar certos valores de convivência, que só podem existir a partir da reparação desse mal enraizado – como acontecia de forma exemplar em A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, de Tim Burton. Mas Haneke está mais para o cinismo absoluto de um Dogville do que para a abertura para o milagre de um Ondas do Destino: o mal é incontornável, e até mesmo o narrador – ponto de vista que o filme assume, sem se furtar a trapacear quando lhe parece conveniente  - aceitará o silêncio final em nome da manutenção social.

Apesar de tudo isso, o incômodo maior de The White Ribbon parte menos de sua perversão moral, e mais de como ela contamina a construção estética do filme. Isso fica especialmente claro no uso do preto e branco, onde os rostos da cor da pureza saltam das roupas negras – as  capas sociais que pervertem e aprisionam um sujeito naturalmente bom, puro e facilmente corrompível. Não faltarão imagens automaticamente associáveis à pureza desse branco – da capa de neve que cobre a cidade no inverno, aos santificados campos de trigo que compõem os mais belos planos do filme – e Haneke usará o contraste com o preto para fins de expressiva simplificação. É justamente a anulação das gradações do espectro humano que o diretor busca em seu filme, onde o vermelho também parecerá preto, e o amarelo se aproximará do branco.

Não há, portanto, possibilidade de individualidade. A sociedade é sempre castradora, e o maior problema de Haneke é que, além disso, ele não consegue vislumbrar ou promover qualquer possibilidade de confronto com essa ordem. Pelo contrário, seu rigor de composição e sua habilidade real de manipulação das cenas são muitas vezes abandonados em nome de soluções de extrema facilidade, em nome desse discurso maior. Em uma das reuniões da cidade, por exemplo, quando ouvimos o orador dizer que a causa do mal ainda estaria entre aquelas pessoas, Haneke rapidamente adere ao contraplano indeterminado da platéia, passando de rosto a rosto como se dissesse: o mal pode estar aqui. Mais do que uma lógica condenável, é um recurso cinematográfico de absoluta primariedade, que só tem algum efeito sobre olhos absolutamente desatentos. Para se manter de pé, os filmes de Haneke precisam dessa desatenção. Tal como a sociedade que ele cria e filma, as estruturas de seu cinema são demasiado frágeis para se colocarem em crise.

Outubro de 2009

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