Minha Terra, África
(White Material),
de Claire Denis (França, 2009)
por Fabio Andrade
Matéria
em movimento
White Material se explica todo em seu prólogo,
mas só é possível perceber isso quando já
se viu o filme inteiro. Começamos no final, no pós-crise,
em um momento onde as tensões parecem novamente afrouxar,
e as coisas cessam o movimento para assumirem novas posições.
O engenho já foi incendiado, a nova geração
ou foi morta (os rebeldes) ou enlouqueceu (Manuel, interpretado
por Nicolas Duvauchelle), os mitos acabaram na fogueira, e a ordem
foi restabelecida pela milícia do prefeito. Ainda no prólogo,
um plano subjetivo adentra a casa dos colonos - fazendo lembrar
aquela ponta de cigarro acesa da abertura de O Intruso
- e ilumina detalhes de decoração local. Máscaras,
quadros e vasos são descobertos pela luz pontual de uma
lanterna, recortando os elementos da escuridão.
Temos aí os dois elementos que norteiam a construção
do filme. Em primeiro lugar, há a dobra temporal que, mesmo
impossível de ser plenamente decodificada (há planos
cuja instância temporal permanecerá misteriosa, não
importa quantas vezes se retorne ao filme), gera a impressão
de uma estrutura que está em constante transformação.
Começamos do final, do momento em que uma nova ordem foi
instaurada, e a matéria magmática do filme retomou
o estado de repouso. Após o prólogo, voltamos no
tempo para um outro momento de relaxamento (que, mesmo em seu
maior grau, nunca consegue dissipar a tensão), onde o cerco
ainda está por se fechar completamente em torno das personagens.
A estrutura do filme é ditada por uma rima de estados (de
um momento de relaxamento para outro), e White Material
será movido por um incessante movimento de compressão
e descompressão. Se em 35 Doses de Rum tínhamos
a construção de uma narrativa a partir de suas lacunas,
aqui somos jogados em uma situação misteriosa, rodeados
pela ameaça desse mistério. Aos poucos sentimos
o filme se comprimir até não restar mais matéria.
White Material é uma espécie de big bang.
Mas
temos, também, aquele plano da lanterna que ilumina seu
interesse na escuridão profunda. Claire Denis volta à
África, continente onde cresceu e realizou Chocolate,
seu primeiro filme. Como os títulos deixam claro, os dois
filmes partem de princípios opostos. Em Chocolate,
a protagonista - criança e branca - estabelecia uma relação
fantasiosa, mesmo que com momentos de incompreensão, com
aquilo que mais superficialmente distinguia o outro: a cor da
pele. A miscigenação era adocicada por esse olhar
infantil, onde as relações entre as raças
eram possíveis e rendiam frutos únicos, particulares
de um erotismo que se sente na língua. Onde antes tínhamos
o recorte mais focado do 1.66:1, agora expandimos para um cinemascope
que é ainda mais expressivo por, mesmo em seu constante
movimento, nunca conseguir captar a razão da ameaça.
A lacuna está dentro do quadro. Alarga-se a visão,
ganhando toda a tela, mas ela continua não conseguindo
enxergar a tensão que sentimos nos nervos. Aqui, a cor
ainda determina, mas o título assume uma visão inversa;
desta vez, são os negros que olham para os colonizadores
brancos. A ênfase sai da relação racial cândida
da infância, e ganha uma franqueza de interesses: material
de branco, coisas de branco. A relação entre as
duas raças é, sobretudo, comercial.
Maria
(Isabelle Huppert) é como uma versão crescida da
jovem França, a menina que protagonizava Chocolate.
Já perto do final do filme, ela tem uma conversa com Jean-Marie,
um de seus funcionários de confiança. Sentados no
telhado do engenho, os dois conversam sobre a vontade de não
fugir. O luar recorta os dois corpos, mas não existe qualquer
luz vinda de frente. Naquele momento, ambos parecem negros, iguais.
Jean-Marie diz não querer abandonar sua terra, e Maria
diz se sentir da mesma maneira. "Para você não
é a mesma coisa", ele responde. "Você não
quer que tomem o que é seu". A câmera fecha
em close sobre Isabell Huppert, e o contraluz desenha seus cabelos
ruivos. Ela nunca poderá ser negra. O desejo de Maria de
se fazer parte daquele ambiente é constantemente tolhido
pelo atravessamento dos olhares nativos, que, quando cercados,
não mais fingirão cordialidade. "Por causa
de pessoas como você, esse país não vale nada".
Valor. Em O Dinheiro, Robert Bresson congelava a mise
en scène para se aproximar de sua personagem-título.
Relações estabelecidas pelo dinheiro são
relações frias, robotizadas, estáticas em
seu movimento. Aqui, a questão é menos o dinheiro,
e mais o valor. A câmera não se permite fixar pois,
ao contrário do dinheiro, o valor é transferível,
é aferido. A colonização é uma aferição
de valores: assim como os brancos usam máscaras africanas
para decorar suas salas, os negros fetichizam tudo que conseguem
dos brancos. De um lado, o museu; do outro, o mito. A bermuda
vemelha que os negros roubam de Manuel logo vira uma bandeira,
assim como, ao final, eles comerão remédios como
se fossem balas. Artigos de branco, artigos de valor. Os negros,
por sua vez, serão filmados pelo ponto-de-vista de Maria,
com rostos de uma expressão bruta e deformadora que reconfiguram
as carrancas decorativas. Ali, aquelas imagens retomam seu sentido
original, aquele que foi esvaziado pelo olhar também fetichista
dos brancos colonizadores. De um lado, os negros projetam seu
misticismo pelo material branco; do outro, os brancos se apropriam
esteticamente do material negro. Em ambos os casos, perde-se o
sentido original.
Em
dado momento, ouvimos um reggae tocado na rádio local,
mas logo Claire Denis sobrepõe a trilha sonora original
do filme, obrigando a convivência daquela manifestação
espontânea com o comentário do Tindersticks. White
Material é muito sobre esse somatório de olhares,
essa sobreposição transparente de conflitos que
produzem uma cacofonia. Como Chocolate, é um filme
sobre a miscigenação; ou melhor, sobre sua inevitabilidade.
Daí que sua personagem mais importante não seja
exatamente Maria, mas talvez Manuel - rapaz nascido na África
mas que, por ser branco, é tratado como estrangeiro em
sua própria terra. Manuel carrega tanto do pragmatismo
francês em si, quanto do misticismo africano: com um corte,
o rapaz pode se transformar em um cão - algo que o filme
promove pela montagem, e que depois será dito explicitamente
por um xamã que aconselha Maria, mais à frente.
É com ele que White Material parece mais se identificar,
pois transita em um limite estreitíssimo onde não
se é reconhecido como coisa alguma; quando a ameaça
de implosão vem de todos os lados - até mesmo da
pulsação das máquinas que descascam café
- só resta ser matéria, e manter-se em constante
transformação. Claire Denis, cineasta do deslocamento,
faz, em White Material, um filme sobre a impossibilidade
de se assentar.
Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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