Tudo
Pode Dar Certo (Whatever Works), de Woody Allen (EUA/França, 2009) por
Fábio Andrade
Em seu lugar
Desde ao
menos Desconstruindo Harry, em 1997, todo novo filme de Woody Allen chega
às telas encoberto por uma mesmíssima névoa: teria ele perdido de vez a mão ou
enfim retomado o curso de sua carreira? O lugar comum disfarça a pressa juvenil,
desmascarável com uma simples leitura da filmografia de Allen: mesmo em suas fases
mais firmes – que tem como exemplo mais corriqueiro a sua produção na década de
1970 – sua carreira é de topografia das mais sinuosas, por vezes indo diretamente
da insuficiência à plenitude (de O Dorminhoco para A Última Noite de
Boris Grushenko; ou de Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão para Zelig);
por outras, fazendo o caminho contrário. Que a inclusão de filmes consagrados
como O Dorminhoco e Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão entre
as obras menores não cause revolta! – o estranhamento é, na verdade, o nó principal
da questão. Pois de crítico a crítico, de espectador a espectador, o único consenso
a respeito de Woody Allen é a de que não há consenso possível. Cada um tem, para
si, sua lista de maiores e menores, e mesmo as supostas unanimidades sempre encontram
alguém que rejeita ou ama qualquer filme de Woody Allen por princípio. Da amostragem,
resta somente essa sensação estranha de um realizador que vive se levantando de
uma queda que nunca aconteceu, ou caindo de uma altura onde nunca esteve. Não
é possível, portanto, tratar de sua obra criticamente que não por um viés ultra-subjetivo
e essencialmente afetivo: Woody Allen não é um sujeito de filmes maiores ou menores,
mas sim de filmes mais ou menos queridos. Tudo
Pode Dar Certo é um trabalho curioso, pois parece pensar justamente esse tumulto
de recepção de um cinema que permanece essencialmente o mesmo, por um público
que não pára de mudar. Em primeiro lugar, há a escalação, como alter-ego de Allen,
de Larry David – sujeito que não só redefiniu o humor de situação moderno com
a criação de Seinfeld, como reencarna algumas das características mais
facilmente associáveis ao diretor: da paradoxal descrença judaica a uma bem articulada
estratégia de constante auto-ironia. Mas mais importante, há a jovem Melody –
personagem de Evan Rachel Wood que, ainda aparentemente ignorante do sarcasmo
do mundo, se apaixona por aquele velho turrão e cético. Tudo Pode Dar Certo
é, em grande parte, um questionamento desta paixão. Por que? Por que uma jovem
tão cheia de vida se apaixona pelo cinismo derrotista, por um desencanto tão pouco
promissor? De onde, em todo aquele amontoado emporcalhado de clichês de cômoda
auto-flagelação, vem tamanho magnetismo – ou, seguindo adiante, o que faz com
que ele por vezes aconteça de forma tão arrebatadora, e por outras termine francamente
ridículo? Por que certos filmes de Allen “funcionam”, e outros não? Ou, como diz
o protagonista em sua primeira conversa com a platéia, “por que vocês querem ouvir
a minha história”? Não há, no andar tateante de Tudo
Pode Dar Certo, a possibilidade de respostas categóricas. Há, porém, em todas
aquelas conversas não-diegéticas, um desejo franco de descobrimento, de estabelecer
uma conexão real com uma geração presente – desejo que começara a deteriorar naquela
conversa entre pai e filho de Dirigindo no Escuro, e esfriava progressivamente
a cada filme de sua fase inglesa - mas que já aparecia levemente reanimado em
Vicky Cristina Barcelona. Enquanto Match Point, Melinda, Melinda
ou mesmo O Sonho de Cassandra tentavam produzir vida por um esmero na estruturação
do roteiro, Vicky Cristina Barcelona e Tudo Pode Dar Certo partem
para uma chave de conexão menos cerebral, onde os afetos tentam pulsar novamente
com a liberdade de Manhattan ou Annie Hall. Os
tempos, porém, mudaram, e os afetos não se manifestam mais pelo existencialismo
a céu aberto ou a adoração de uma cidade e um modo de vida que já não mais existem.
Woody Allen parece tomado por um empenho de atualização que se torna comovente
justamente por se tratar de um cinema arcaico, saudoso de uma época que ele nunca
viveu, e especialmente orgulhoso de seu anacronismo. Em Vicky, esse afeto
vinha da pulsão dos vermelhos, da melancolia morna dos poentes, da excitação turística
que explorava novas paisagens, texturas e corpos. Aqui, uma cena cabal determina
a origem do afeto: após uma crise de pânico, Boris Yelnikoff senta frente à TV
com Melody, e juntos assistem a um musical de Fred Astaire. Ali, sob a orquestração
melodiosa e rebuscada da trilha diegética, surge uma conexão, uma possibilidade
de identificação que permanecia oculta, impossível. Ali, o afeto arregaça suas
mangas: ele e Melody, em minúsculas e maiúsculas, se amam. Tudo
Pode Dar Certo é um filme de admirável felicidade neste recuo, pois percebe
que a permanência de Woody Allen não deve nada à sua suposta verve textual, tampouco
à moralidade farsesca de suas produções inglesas. Como diz Yelnikoff sobre seu
primeiro casamento, este encontro do cineasta com um certo cinismo “era racional,
fazia sentido... no papel, éramos ideais”. Mas nada disso impede a falência do
relacionamento e a tentativa de um suicídio que, fracassado, descompassa todo
o cinema mais recente de Allen, tirando-lhe (talvez permanentemente) sua valiosíssima
fluidez. Sua conexão com uma nova geração vem justamente desse afeto perdido,
desse embalo musical de seus textos e de sua mise en scène, de uma alegria
de encenação (tanto para quem faz, quanto para quem vê) que morreu com a Hollywood
clássica. É por aquela melodia que Boris Yelnikoff se lembra de quando conheceu
sua primeira mulher, e é por ela – e para ela – que ele redescobrirá o amor. É
natural, portanto, que Woody Allen traga ao filme (sobretudo pelos atores, mas
não só) um tom especialmente artificial, que evidencia sua preocupação metalinguística.
Tudo Pode Dar Certo chama constante atenção para a mecânica de cues
que determina a montagem e a encenação. As conversas, que pareciam acidentalmente
registradas em Todos Dizem Eu Te Amo ou Hannah e Suas Irmãs, dão
lugar a cenas que acentuam suas entradas e saídas, como esquetes que existem somente
para a câmera, flutuando em um tempo onde não há passado ou futuro possíveis.
É uma escolha de tom acertada (mesmo quando pouco refinado), pois a afirmação,
aqui, é de clichês cuja beleza depende de sua raiz utópica: o amor à primeira
vista; a possibilidade de se encontrar felicidade em uma abertura para o mundo;
a destruição do pensamento conservador com uma boa dose de liberdade; o destino;
a maneira como casais (ou trios) improváveis se completam à perfeição; o poder
de cura de um simples número de jazz. Tudo Pode Dar Certo
é a comprovação de como uma sequência sistemática de “erros” pode produzir um
acerto; de como, entre duas pessoas cuja incompatibilidade parece incontornável,
há sempre uma tradição de vivência, um ... E o Vento Levou que é capaz
de restabelecer um elo, e de fazer algo que era importante no passado render algo
de vivo pro futuro. Nesse sentido, o filme se torna um especial justamente
por Woody Allen encarar esta cisão entre passado e futuro com uma serenidade realmente
afirmativa, que se torna mais forte a cada passo dado em direção à morte. Justamente
por isso, o casamento de Boris e Melody não pode durar: é preciso que ela siga
em frente e busque seu próprio caminho, como os jovens cinéfilos eventualmente
abandonam os filmes de Allen em direção a terras de presente mais fértil. Importa
pouco que, no filme, o caminho escolhido chegue muito próximo do phoney:
ela se apaixona por um ator inglês que mora em um barco, lê, pensa e toca flauta
– sujeito que “jamais será um gênio, mas que é atraente o suficiente para ser
uma estrela”. O que é realmente significativo é que esses encontros se dão; que
eles se bastam em sua brevidade e, melhor ainda, propiciam novos encontros. Se
há uma característica realmente comum a Boris Yelnikoff e Woody Allen é esse tom
professoral, essa vocação iniciática que se contenta com a monumental tarefa de
despertar, no outro, a paixão por se estar enamorado – em última análise, paixão
celebrada e encarnada pelo próprio cinema. Esse conforto transitório, tão facilmente
criticável, parece ser o lugar mais justo e nobre que Woody Allen já reivindicou
para seu cinema. Maio de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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