in loco - cobertura dos festivais
Nossa Vida Exposta (We Live in Public),
de Ondi Timoner (EUA, 2009)
por Fábio Andrade
A
síndrome da informação
Nossa Vida Exposta traz diversas das qualidades que DiG!,
filme de 2004 também dirigido por Ondi Timoner, já
apresentava: uma escolha de tema de forte interesse para o nicho
no qual o filme pretende se inserir (em DiG!, a rotina
de duas bandas iniciantes e que, à época, começavam
a atrair alguma atenção; em Nossa Vida Exposta,
os feitos de Josh Harris, artista, empreendedor e pioneiro da
internet); uma insistência incomum e providencial de realização
(em DiG!, alguns anos; em Nossa Vida Exposta,
quase duas décadas); e, sobretudo, um acesso raro ao universo
documentado. Ondi Timoner faz filmes sobre pessoas que ela conhece
e que frequentam lugares nos quais ela se sente à vontade,
o que permite que testemunhemos momentos que dificilmente veríamos
em um filme feito "de fora". Em DiG!, essa
relação entre documentarista e personagens era tão
aberta que beirava a promiscuidade - algo comprovado no rompimento
de alguns personagens com a diretora após o lançamento
do filme.
Em Nossa Vida Exposta, mais uma vez temos ressaltada
essa qualidade de testemunho: quando Josh Harris leva suas idéias
ao extremo e cria o projeto "Quiet: We Live in Public"
- uma comunidade vigiada por câmeras 24 horas por dia, que
misturava hedonismo e fascismo em um único experimento
- Ondi Timoner e sua câmera estavam lá, entre os
moradores voluntários. Parte considerável do que
o filme tem de mais interessante vem justamente daí: a
possibilidade de presenciar esses eventos - que Timoner faz questão
de legitimar, com depoimentos da intelligentsia de cada
campo, seja ele o da internet, o pessoal ou mesmo o artístico
- de experimentar os acontecimentos como a imprensa tradicional
nunca foi
capaz, e com um tempo de decantação inviável
fora do documentário. A menção à imprensa,
porém, já faz entrever os maiores problemas do trabalho
da documentarista. Pois, a rigor, seus filmes não vão
muito além da reportagem dedicada: não há
um olhar artístico, uma intenção mais clara
para além da exposição do registro, tampouco
um talento real na maneira de articular esse material. Ao contrário,
Nossa Vida Exposta é repleto de cortes da mais
pobre associação, seja o corte entre imagens, ou
entre som e imagem. Timoner tem uma relação estritamente
informativa com o material, e qualquer tentativa de articulação
estética está fadada ao fracasso. Sua incapacidade
de compreensão artística é tamanha que torna
possível uma canção dos Pixies sobre suicídio
seja conjugada a cenas da queda das duas torres gêmeas,
tão somente por o título ser "Wave of Mutilation".
Pouco importa, portanto, que o uso seja leviano, e o resultado,
grotesco - guitarras falando de uma onda de mutilação
é caminho mais fácil para uma leitura roqueira do
11 de Setembro. O sentido é subjugado ao choque do óbvio,
e o óbvio é quase sempre vulgar.
Mas DiG! trazia todos esses vícios
e era, ainda assim, um filme de inegável força.
O problema é que quando se filma a rotina de bandas de
rock entre festas de cocaína, pancadarias entre os integrantes
no meio de um show, e atestados de um fracasso provocado, a força
do material é tão bruta e carnal que sua simples
exposição já lhe basta. Nossa Vida Exposta,
porém, se dedica a questões bem mais engenhosas
e, diante delas, a abordagem televisiva de Ondi Timoner fracassa
em quase todos os aspectos imagináveis. Toda a possibilidade
de confronto de registros (uma vez que os experimentos de Harris
sempre envolviam a auto-exposição audiovisual completa
e voluntária), de contextualização artística
(o trabalho de Harris parece o elo perdido, e não necessariamente
bem sucedido, entre os punks de Nova York e o questionamento espacial
que predomina nas instalações expostas em bienais
de arte desde então), a possibilidade de inversão
perversa das idéias que ferviam na mesma Nova York vinte
ou trinta anos antes (se colocar no mundo pode ser uma forma de
arte, mas essa consciência se transformou inevitavelmente
em uma forma de comércio) - tudo isso é ignorado
em nome da informação pura e simples, do registro
pelo registro. E aí resta apenas o shock value
barato da denúncia de como a vida das pessoas é
hoje controlada pela internet, e de como a privacidade se tornou
uma mercadoria moderna. Nossa Vida Exposta carrega consigo
a inutilidade que o jornalismo moderno tomou como missão:
informar o espectador daquilo que ele há muito já
sabe.
Setembro
de 2010
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