ensaios
Polifonia(s) do(s) cinema(s)
Walden: Diaries, Notes and Sketches
por Luiz Soares Júnior

Giorgio Agamben, em seu belo Profanações, comenta: “ Os filósofos medievais estavam fascinados pelos espelhos. Em particular, interrogavam-se acerca da natureza das imagens que apareciam neles. Qual o seu ser (ou não-ser)? São corpos ou não-corpos, substâncias ou acidentes? Identificam-se com a cor, a luz ou a  sombra?  (...) E de que modo o espelho pode acolher as formas? (...) Por certo, o ser das imagens deve ser de natureza muito singular, porque se fossem apenas corpos ou substâncias, como poderiam ocupar o espaço já ocupado por este corpo que é o espelho? E se seu lugar fosse no espelho, estas também se deslocariam, caso o deslocássemos. (...) Da natureza insubstancial da imagem derivam para esta duas características. Por não ser uma substância, esta não possui realidade contínua, nem se pode dizer que se mova através de um movimento local. Ela é antes engendrada a cada instante segundo o movimento ou a presença de quem a contempla: ‘como a luz é criada sempre novamente com a presença do que é ofuscante, assim podemos dizer da imagem refletida no espelho que esta é gerada a cada vez em que nela se reflete uma presença que a  contempla'. O ser das imagens é uma contínua geração (semper nova generatur). Ser gerado, e não substancial, ela se cria continuamente a cada instante, como os anjos do Talmud que cantam por um instante a grandeza de Deus para em seguida serem tragados novamente pelo Nada”.

Road to NowhereA percepção extática, o collage autobiográfico, a polifonia estrutural e enunciativa de Walden apresenta-nos uma versão intensivamente transitiva (e intransigente) de filme-diário: a rigor, não há uma enunciação encarregada de representar uma experiência, ou edificar um mural memorialista, como em Reminiscências de uma Jornada para a Lituânia; correlato a isto, inexiste um corpo que seria o lugar desta enunciação, personagem detentor de um logos – de um passado e um discurso sobre o passado, uma narrativa –, ou mesmo o corpus gregário da família, da turma underground, dos companheiros de passagem e viagem. Walden é uma experiência esquizóide materializada em celulóide: há centenas de corpos – não apenas humanos: animais, paisagens, sons, texturas – que nunca chegam a se encontrar, a estabelecer um diálogo, que não definem a centralidade sincrônica da relação enunciador-receptor.

À semelhança da fantasmagoria inerente ao ser das imagens refletidas no espelho, referida por Agamben, os planos de Walden nunca chegam a ser propriamente planos, unidades espaço-temporais onde se expõe o “teatro das matérias” do que será (ou deveria ser) desenvolvido ao longo das sequências. Road to NowhereAqui, tudo flutua numa espécie de limbo magmático associativo, que tem na figura formal da superposição o seu elemento-chave;  e na figura retórica da metonímia o seu princípio construtivista: somos bombardeados por objetos parciais – rostos; gestos que por um momento se destacam de um corpo e pairam, aconchegados aos objetos que encerram ou às inflexões que os recortam; volutas de músicas que se esgarçam na diafaneidade de uma tarde de brincadeiras infantis – celebrações, como o Imagine de Lennon filmado em sua cama, estriadas por uma concepção serial e sincopada da montagem que lembra muito o uso dos strobe cuts em Warhol. Um instante antes de se desvanecer (e se transformar) em outros corpos e paisagens, a presença semi-encapsulada pelo olho da câmera parece o rabisco de um rastro de ser, cujo destino será o de se agregar à foz de inúmeros outros vestígios e suspensões, pulsantes e prismáticas.

Badiou escreve sobre História(s) do Cinema, de Godard, algo que pode ser aplicado a Walden: “(...) Daí um procedimento de composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Um coup des dés. (....) alguns enunciados maiores induzem a subtextos, escoltados por um rumor quase inaudível, ou metamorfoseados por motivos musicais , enquanto que as citações são tratadas como suportes de variações infinitas por coloração, câmera lenta, superposições de imagens, retrocedimento de imagens, cortes, incisões disparatadas, recorrências, delimitações, círculos, mutilações visíveis”. Poder-se-ia falar aqui num trabalho de transliteração, do processo de mapeamento (palimpêstico) de uma(s) escrita(s) em outra. Road to NowhereOs sintagmas deste grande Texto que Mekas, à semelhança de Godard, converte e transverte em metáforas deslizantes e circulares são: Velvet Underground and Nico, Passeio em Nova York, Encontro com John Lennon, Visita ao circo... Só que o Godard de História(s) efetiva um trabalho de luto, de rememoração e ressignificação redentorista de uma série de signos ao longo da História do cinema que foram aliados do poder de destruição e manipulação da Guerra e do dinheiro, embora apresentando-se como esferas platônicas ideais e imaculadas de nitrato lírico (la diva). Em Mekas, há uma demiurgia de showman que imanta de feérico todo plano. Trata-se de uma celebração dos momentos íntimos de uma geração que modificou radicalmente a noção de intimidade (e o sujeito mônada e “julgador” que esta pressupõe), levando seus jogos para a rua, os music halls, o cinema, inervando a História e a arte com os curto-circuitos da pulsão e a exuberância da festa – esta part maudite carnavalesca, antecâmara do sagrado, na qual Bataille via a radical transgressão dos valores de acumulação e conservação do trabalho: a geração do hapenning, do cinema experimental como diário ou registro vérité das encenações presentes em todo cotidiano (Warhol), da ritualização do corpo como um teatro móvel onde  a palavra seria uma matéria orgânica entre outras, a ser excretada, consumida, ejaculada (Cassavetes, Shirley Clarke, Otto Mühl) – visão que, aliás, não estava nada distante de ser uma atualização do teatro da crueldade artaudiano num contexto histórico e estético particularmente explosivo.

Road to NowhereTemos um princípio energético dos leitmotivs – afetos, happennings, viagens – que orientam a Marcha Heróica do filme. Este caráter centrífugo de tudo e de todos subverte consideravelmente a noção de diário intimo; se há um Ego que se põe, repõe e se recompõe aqui – como o detentor de uma experiência que só se dá après-coup (em retrospecto) –, é o Ego que acolheu de forma tão agônica as impressões que o mundo imprimiu sobre ele (e não que ele imprimiu sobre o mundo), que se torna o avatar daquela estranha memória involuntária de que nos fala Proust, a verdadeira memória, fixação do turbilhão da experiência no recipiente do Id, e cujos significantes se coagulam nos recantos do nosso corpo. Walden é o filme que mais radicalmente inaugura nossa percepção de cinéfilos contemporâneos, cinéfilos aos quais repugna singularmente qualquer filme que não carregue em seu bojo os sulcos da finitude, que não agregue em sua matéria e  seu tônus temporal os esbarrões do Acaso (Sganzerla), a jouissance do ato falho e dos lapsos (Céline et Julie vont en bateau, de Jacques Rivette), as aventuras da improvisação, o work in progress (Out 1, de Rivette com Suzanne Schiffman), a vertigem de correspondências do delírio hebefrênico (Carmelo Bene), o risco, enfim – traduzido na divisão do filme em bobinas que, a rigor, segundo Mekas, poderiam ser vistas em qualquer ordem aleatória –, de encontrar em cada esquina e ao final de toda seqüência a epifania ou a Morte. Rouch, o Rivette de Céline et Julie, Cassavetes, o Godard dos anos 80 e o Glauber de Idade da Terra são os outros grandes expoentes deste cinema frequentemente ex-cêntrico e poroso a todos os outros cinemas (às histórias do cinema e seus personagens), dialogal e sinérgico, que soube superar a velha oposição MacMahonista, hoje regressiva, entre um cinema de mise en scène - um cinema da fascinação - e um cinema ontologia.

Walden é menos um diário do que uma série de notas de rodapé destacadas de seus textos respectivos e  reconstituídas por um sintetizador eletrônico encarregado de tocar um moteto contrapuntístico. Os diversos “Eus” interpelados pela travessia “isorrítmica” de Mekas – seus companheiros de geração e de revolução – são incorporados materialmente ao filme: assim, temos as sinapses ondulatórias e vibracionais de Brakhage, o seu moving visual thinking; o caráter tátil da imagem em Ernie Gehr, assinalado pelo trabalho de exposição do filme à luz e pelo seu bruxulear; o zoom ziguezagueante de Michael Snow que – à semelhança de um catalisador, ao contrair e expandir o espaço – modifica nossa noção de uma duração contínua, transformando o tempo numa dimensão cúbica do espaço; ou a técnica de Ken Jacobs, em Tom, Tom, The Piper’s Son, de fazer incidirem e colidirem energias contidas (e contidas) pela unidimensionalidade espacial de um curta da Biograph, transformando (ou revelando) o plano como uma cratera que o entomologista-arqueologista se encarrega de trazer à superfície.

Road to NowhereSerge Daney, numa entrevista dada a Bill Krohn em 1977, teve um insight que sempre carrego comigo, a título de advertência e divisa, nem que seja para ser saudavelmente subvertida: “A posição crítica não se justifica na maior parte dos casos, em se tratando do underground americano, já que são filmes que não tem necessidade de mediação, pois trabalham, pelo menos a maior parte deles, com processos perceptivos primários. Esta é uma grande diferença em relação à vanguarda européia (Godard, Straub), onde todo trabalho em cima de elementos primários ( sobre a percepção) só possui impacto real se incide também sobre elementos do pensamento, de textos prévios, do significado”. A rigor, Walden é um filme que pode ser incluído nesta “condição exclusiva” do Underground americano; mas não apontaria também, esta obra-prima, para uma posição intermediária, sui generis, na medida em que o pano de fundo (ou antes: os fluxos de fundo) de Walden são as obras de uma geração de artistas e de pensadores, o(s) Texto(s) onde a vida de uma geração foi cicatrizada como marco e monumento?

Setembro de 2011

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