in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Eu, o Vinil e o Resto do Mundo, de Lila Rodrigues
e Karina Ades (Brasil, 2010) por Fábio Andrade
Fugindo
do ouro Eu, o Vinil e o Resto do Mundo nasce com
uma série de problemas para resolver, algo que o filme até certo ponto transfere
in natura para o espectador. A seu favor, há o movimento (anterior ao próprio
filme) proposto na escolha do tema: a decisão de cobrir um importante campeonato
de DJs de hip hop em São Paulo traz, em si, um enfrentamento a um panorama
de produção documental conservador e extremamente refratário às influências externas,
que ainda hoje parece obcecado com a pureza de um suposto paraíso perdido brasileiro,
simplificando ao extremo os termos da produção da cultura. Esse problema o filme
resolve com uma mudança de foco simples, mas essencial: importa menos o hip
hop, em si, e mais a sua presença na vida daquelas pessoas. Temos, portanto,
um documentário de personagens. Por outro lado, há uma ingenuidade embaraçosa
na maneira como as diretoras lidam com esse imaginário cultural e, mais grave,
como elas organizarão as falas de suas personagens. Iconograficamente,
Eu, o Vinil e o Resto do Mundo é de uma obviedade escolar: estão lá as
tomadas em slow motion dos b-boys dançando em passarelas; as quadras
de basquete; as visitas às lojas de vinis; uma montagem em stop motion
com o toca-discos em primeiro plano, viajando por São Paulo como se fosse um disco-voador.
Tudo isso, claro, sincronizado às batidas da incessante música incidental, com
cortes ditados pela acentuação tônica do bumbo, em uma suposta irmandade temática
(o filme respira junto da música) que prega para o convertido – vícios
talvez explicados por Karina Ades já ter dirigido clipes de hip hop. São
opções estranhas, pois parecem reivindicar para o filme a missão de não ser só
um documentário de personagens, mas também uma espécie de press-release
da cultura hip hop, de fazer a periferia de São Paulo se passar pelo Bronx.
Para um filme que escolhe olhar para a presença do hip hop em vez de pensar
o gênero musical em si, esse fascínio iconográfico não passa de um despropósito. Mas
esse abraço acrítico do clichê se torna realmente problemático quando transferido
para a montagem dos depoimentos. Em um primeiro momento, Eu, o Vinil e o Resto
do Mundo não passa incólume à “síndrome do Afroreggae”, onde a arte perde
sua função auto-suficiente e, para usar um termo de Rancière, se torna ferramenta
de “medicina social”. As falas – neste primeiro momento quase sempre previsíveis
e, por isso mesmo, afirmativas de um status quo que se pensa denunciar
– aparecem reunidas em blocos temáticos, que reduzem as personagens a questões
que elas têm em comum.
Mas, mais do que isso, a ampla fragmentação dessas
falas é um duplo suicídio estético. Em primeiro lugar, ela impede que, durante
toda a primeira metade do filme, o espectador possa construir uma trajetória de
intimidade com as personagens – aqui, estilhaçados em sua semelhança (de fala,
mas também de cenário, de gestos, de vestuário, de uma demanda de personagem já
cristalizada pela televisão, que os DJs reiteram por acreditar que é aquilo que
se espera deles). Em segundo, ela mostra uma incompreensão da própria atividade
que ela se dedica a filmar. Pois
embora a montagem fragmentária seja um atalho falso de mimetização de um ritmo,
ela inverte a natureza do trabalho do DJ: produzir, a partir do fragmento, uma
impressão de continuum. O fascínio que surge dos planos das mãos dos DJs
em ação não é da agilidade, do truque ilusionista, como parece pensar a montagem;
mas sim da maneira como uma operação de recortes é capaz de construir um ritmo
e uma melodia de fato íntegros. A rigor, o DJ mais técnico é o que consegue, pelo
maior número de fragmentações e interrupções, criar a obra de fluência mais suave,
cortando sem expor as cicatrizes. Em um possível paralelo com a montagem narrativa
do cinema clássico, o DJ mais ábil é o que melhor assimila a necessidade do corte
dentro da construção desse continuum – ideologia que, como aconteceu com
os cinemas novos, logo produziria seu reverso irônico: os DJs que querem exatamente
revelar o corte e suas emendas, como fez o Girl Talk na micromontagem de Secret
Diary. Esse descompasso entre diretoras e objeto é de
base, e por isso mesmo latente ao longo de todo filme. Mesmo quando as personagens
se desvencilham da necessidade de preencher expectativas e começam a falar daquilo
que realmente é importante para elas, os depoimentos sobrevivem com uma força
crescente que é quase alienígena ao próprio filme. É sintomático, por exemplo,
que todos os DJs relatem como o momento da anunciação de sua vocação um choque
estético desinteressado (todos eles se descobrem apaixonados enquanto espectadores
de um outro DJ, para então decidirem sua vocação), mas ainda assim o filme muito
raramente busque esses momentos nas platéias das batalhas de DJs, isolando os
músicos (ou cientistas, como um dos personagens prefere dizer) em um trono de
exibicionismo e autismo técnico. Os personagens, muito conscientes da razão de
sua atividade, dão pistas constantes para o ouro que as diretoras parecem nunca
querer buscar, talvez por não acreditarem realmente que esse ouro exista. Ainda
assim, Eu, o Vinil e o Resto do Mundo sobrevive – em especial em sua segunda
metade – pela carga emocional natural daqueles personagens e das situações (de
vida) em que se meteram. Pois ser DJ não é promessa de um futuro melhor (pensemos
aqui nos jogadores de futebol em Fora de Campo, de Adirley Queirós); muito
pelo contrário, é a opção kamikaze pela falta de futuro em uma sociedade regida
pelo capital, optando por uma crença artística e cultural que se sabe marginalizada
e cuja única satisfação possível é o envolvimento na própria realização e o eventual
reconhecimento dos seus pares (para um filme de competição, é comovente que o
sentimento predominante seja o da camaradagem). Daí que o momento mais forte do
filme seja justamente no encontro de uma possibilidade de narrativa de anti-herói,
que é quando o DJ Rm é selecionado para uma competição internacional, onde se
classifica entre os 12 melhores DJs do mundo. Esse momento é forte não só por
alcançar o ápice declarado por todos os personagens ao longo do filme, mas principalmente
por evidenciar a crise do pós-filme, onde esse ápice de reconhecimento precisa
bastar em si mesmo, pois seu valor não é percebido pela comunidade (no caso, o
país) do próprio artista. Há uma inegável nobreza nessa entrega desinteressada,
pois, no dia seguinte, aquelas mãos mágicas e que transpiram potência voltarão
às linhas de montagem e às máquinas de fotocópias e encadernações – ou, como diz
a melhor metáfora de todo filme, voltarão a fazer anéis de cobre que, polidos
à perfeição, perdem o brilho no exato segundo em que a pessoa para qual ele foi
feito o coloca no dedo. Abril de
2010
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