Vencer (Vincere), de Marco
Bellocchio (Itália, 2009)
por
Fábio Andrade Imagens
bastardas
Vincere tem sua cena mais marcante
dentro de um cinema. Durante uma sessão aparentemente normal, a sala se torna
epicentro da guerra. As imagens de um cine-jornal tomam a tela e, com um contraplano,
Marco Bellocchio junta as pessoas em alvoroço à projeção cinematográfica. Os corpos
são cobertos pela luz do projetor; uns aparecem em silhueta, outros têm a cor
sugada pela imagem em preto e branco que cobre seus corpos. Mais adiante, em outro
momento cinematográfico, Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno) reconhecerá seu drama
pessoal em uma cena de O Garoto, de Charles Chaplin. A via das imagens
é sempre de mão dupla; quem afeta é sempre afetado. Imagem, aqui, é um termo preciso
pois, apesar da presença marcante do cinema, não é somente dele que Vincere
tratará. O cinema é apenas um dado no vasto manancial imagético que toma a
Itália na eclosão fascista, e Bellocchio traz vários desses componentes para seu
filme – da postura mitológica de Benito Mussolini ao grafismo da tipologia garrafal
das palavras de ordem, e das manchetes dos jornais. Vincere é sobre a pregnância
desse repertório, e a maneira como cada um desses elementos determina a relação
entre duas pessoas, ou entre a pátria e seus cavalos de batalha emocionais. Temos
um filme claramente partido em dois, que usará essa divisão para acentuar seu
descompasso, seu desequilíbrio interno. Na primeira parte, a paixão que incendeia
os olhos é a mesma que erige os mitos: Ida Dalser se apaixona por Mussolini (Filippo
Timi), e se entrega – de corpo, alma e capital – à construção dos sonhos de seu
amante. A montagem constrói a vertigem por meio da rapidez, valor que Ítalo Calvino
(outro italiano) defendia, citando Leopardi (também italiano) em Seis Propostas
Para o Próximo Milênio: “A rapidez e a concisão do estilo agradam porque
apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou cuja sucessão é tão rápida
que parecem simultâneas, e fazem a alma ondular numa tal abundância de pensamento,
imagens ou sensações espirituais, que ela não consegue abraçá-las todas de uma
vez nem inteiramente a cada uma, ou não tem tempo de permanecer ociosa ou desprovida
de sensações.” A
paixão – política, erótica, romântica, visual – cria uma espécie de bolha sem
gravidade, que o filme constrói justamente pela velocidade extrema da encenação
e da montagem. O turbilhão de planos e grafismos que vemos na primeira metade
de Vincere erguem o espectador – como sua personagem-guia – em um estado
de suspensão eufórica, onde tudo o que se deseja é que esse movimento não cesse.
Não é possível reter todos os signos, mas, ao mesmo tempo, esse movimento gera
um prazer suficiente nessa impossibilidade. Exatamente por isso, a passagem para
o segundo estado de Vincere – em essência, estado de repouso e ociosidade
do corpo – é tão traumática. Pois à agilidade extrema, Marco Bellocchio confrontará
o cerceamento da possibilidade de movimento trancafiando sua personagem (e o espectador)
no hospício. Não existe mais excitação; resta apenas o drama bastardo. Novamente
como em Calvino, adotar a agilidade é respeitar a lentidão. Mas
personagens são imagens, como nos lembra a cena onde o corpo é coberto pela projeção
cinematográfica. Imagens no sentido clássico: ícones, brasões, artefatos. O cerceamento
do corpo é também o cerceamento da imagem em sua capacidade significante. Saímos
do registro propagandista e vamos à censura pura e simples que, aqui, ganha símbolo
maior na separação de mãe e filho. Filho que terá o mesmo nome e será interpretado
pelo mesmo ator do pai, como se Bellocchio sustentasse que suas funções narrativas
permanecessem espelhadas: Ida e Benito; homem e mulher; ícone e história; significante
e significado. A tragédia maior do fascismo é justamente essa separação de metades
que se completam, e que perdem qualquer força quando separadas. Homem e mulher
perdem qualquer traço de beleza e sensualidade. Como vemos na imitação que Benito,
o filho, faz do pai, a prole se parece com a matriz, mas só existe como
caricatura, desprovida de quaisquer traços dos significados que, um dia, fizeram
com que ela ecoasse. Outubro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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