in loco - 43o festival de brasília
Vigias,
de Marcelo Lordello (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Esgueirar-se
na escuridão
Em seu primeiro longa, Marcelo Lordello dá prosseguimento
a um trabalho bastante particular de mapeamento da violência
introjetada no cotidiano, e manifesta por vias menos pensadas
pelo cinema brasileiro. N. 27, seu brilhante curta anterior,
usava o ambiente escolar para pensar manifestações
de constrangimento gerada pela violência social, muito antes
de o bullying se tornar a discussão da rodada.
Vigias, seu primeiro longa, é um documentário
que já se explica em seu título: Lordello e equipe
acompanham a rotina de homens que trabalham como guardiões
de prédio de classe média em Recife. O filme alterna
de uma personagem à outra como partes integrantes de uma
mesma noite, com alguns depoimentos que acompanham a predominante
observação. Por sua simplicidade e contenção
visual, é bastante provável que Vigias
passe sem que suas operações sejam percebidas. Toda
a construção do filme - das estratégias de
aproximação à montagem, passando por uma
fotografia bastante discreta de Ivo Lopes Araújo - tenta
reconstituir um certo ritmo da noite, no qual os pequenos acontecimentos
são amplificados pelo silêncio das ruas, e que depende
essencialmente que filme e espectador respirem em um mesmo compasso.
Com a percepção aguçada pela imersão
no espaço e no tempo do filme, Vigias demanda
atenção justamente ao que se esgueira em sua própria
escuridão, mas que é dado a ver justamente por esse
estado desperto de quem se coloca em vigília.
Em primeiro lugar, há um comentário formal: Vigias
atravessa a noite para chegar ao dia, e ambos os momentos são
pensados metaforicamente. Se o filme se coloca de forma crítica
à obsessão com segurança de Vigias,
é expressivo que a chegada do dia não interrompa
o filme, mas os leve a acompanhar suas personagens no trajeto
do trabalho para a casa. Noite e dia são pensados como
oposições simbólicas de escuridão
e clareza, e o filme faz justamente esse trajeto de um para outro,
um movimento de uma sensibilidade à outra, do ocultamento
à iluminação. Se em dado momento um breve
encontro da equipe com uma das administradoras de um prédio
deixa claro que a equipe só tivera acesso por a responsável
ser amiga da mãe de uma das pessoas da equipe, isso é
contrastado ao eloquentíssimo plano final, em que a equipe
de filmagem chega à casa de um dos vigias que, deixando
a porta aberta, vai buscar sua esposa para apresentá-la
a seus novos amigos. Mais do que um elogio bucólico e canalha
à simplicidade, Vigias opõe dois extremos
de comportamento para se fazer perguntas essenciais: o que deu
errado? O que a obsessão com segurança garante?
O quanto ela aproxima e o quanto ela separa as pessoas? Como ela
influencia nossa rotina e, principalmente, as pessoas que somos
social e internamente?
Tais perguntas não serão respondidas, mas é
especialmente interessante ver como Marcelo Lordello as levanta
sem nunca violentar o filme com sua arbitrariedade. Se N.
27 era um filme admirável muito por suas questões
não superarem sua vontade de cinema - por, ao contrário,
motivá-la -Vigias cria um sistema parecido entre
tema e cinema para que ambos cheguem ao espectador com maior força.
Em dado momento, quando o filme passa enfim da noite para o dia,
temos um plano de um rádio - um elemento que conecta as
personagens do filme em um belo falso raccord - em que
o câmera faz uma correção de íris.
O plano parece um tanto deslocado, mas é interessante pensá-lo
como ilustração do tipo de estratégia cinematográfica
que o diretor usa para transmitir coisas muito concretas - no
caso, a necessidade de se "ajustar" o olhar (e a perspectiva)às
mudanças de luminosidades e de realidades dentro do filme.
As operações cinematográficas levantam questões
que extrapolam o cinema: vemos um dos porteiros fazendo sua ronda
por meio das diversas câmeras de vigilância que monitoram
a movimentação interna de um prédio, mas
em vez de isso ser reduzido a um mero jogo de linguagem, o recurso
abala a estrutura social que coloca todo aquele aparato em serviço:
vigiar é ser vigiado, e a relação entre empregador
e empregado é também uma maneira de manter o outro
por perto, sob o julgamento de nossos olhos. Embora não
seja tão desnorteante quanto N. 27 (questão
de natureza, antes de ser de realização), Vigias
leva o cinema pernambucano a um lugar que ele vem aspirando há
algum tempo com diversos filmes, mas que até então
escorria pelas frestas deixadas entre matéria e forma (como
sempre, conceitos indissociáveis, mesmo que muitas vezes
tratados como opostos: não há matéria sem
forma): ser um filme verdadeiramente político.
Dezembro de 2010
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