A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen),
de Florian Henckel von Donnersmarck (Alemanha, 2006)
por Ronaldo Passarinho

Um homem bom

Gerd Wiesler, capitão da Stasi, a temida polícia política da extinta República Democrática Alemã, a RDA, é um bom camarada. No início de A Vida dos Outros, Wiesler nos é apresentado como um funcionário mais do que exemplar, um homem que acredita no que faz e que leva seu trabalho para casa. Depois de dar uma aula demonstrando a eficácia de certos métodos de interrogação que até mesmo alguns de seus alunos consideram desumanos, ele é convidado por seu chefe para ir ao teatro. Lá ele se oferece para investigar o autor da peça, um cidadão aparentemente acima de qualquer suspeita, descrito como o único escritor socialista da Alemanha Oriental que ainda é lido no Ocidente. Depois de instalar um punhado de microfones no apartamento do escritor, Wiesler começa a monitorar cada momento da vida de sua presa. Mas logo passa de espião a anjo da guarda, em uma reviravolta um tanto abrupta, falsificando relatórios a seus superiores das atividades cada vez mais suspeitas do escritor. E é então que somos informados que Wiesler, além de um bom camarada, é um homem bom.

Florian Henckel von Donnersmarck, que assina a direção e o roteiro do filme, faz questão de nos informar isso várias e várias vezes. Quando o escritor toca uma peça musical intitulada Sonate vom guten Menschen (Sonata para um homem bom), Wiesler se emociona. Para não deixar dúvida no espectador de que a emoção é genuína, Donnersmarck põe uma lágrima a escorrer pelo rosto impassível do capitão da Stasi. E o escritor ainda comenta com a namorada que só homens bons podem realmente compreender músicas como essa a ponto de se emocionarem. Logo, Wiesler deve ser um homem bom.

Em uma cena posterior, a namorada do escritor diz a Wiesler: “Sie sind ein guter Mensch”. Ela ainda não sabe que ele é da Stasi nem que está investigando a vida de seu namorado e, por extensão, a dela, mas o achou um homem bom. Na conclusão do filme, anos após a queda do muro de Berlim, Wiesler compra um romance do escritor, intitulado Sonata para um homem bom, dedicado a HGW XX/7, seu código como agente da Stasi. O atendente pergunta se deve embrulhar o livro para presente. Wiesler responde: “Não. É para mim”.

Depois da reviravolta principal, assinalada pela lágrima que escorre no rosto de Wiesler, Donnersmarck parece ter menos interesse em criar novas reviravoltas do que em reafirmar a veracidade da metamorfose do capitão. Tudo que vem depois é repetidamente telegrafado. Não há mais surpresas nem suspense. O filme, que se apresentavava como um thriller, se acomoda no melodrama.

Se o roteiro é previsível, a direção surpreende por seu anacronismo. David Bordwell batizou o estilo hoje predominante em Hollywood de “continuidade intensificada”. Ele identifica quatro táticas como as mais representantes desse estilo: uma rapidez cada vez maior na montagem, extremos bipolares de distância focal na escolha das lentes, enquadramentos cada vez mais fechados em cenas de diálogo e uma câmera inquieta (na verdade, múltiplas câmeras inquietas, rodando simultaneamente). A continuidade intensificada há muito deixou de ser patrimônio de Hollywood e é empregada largamente mundo afora.

Donnersmarck usa múltiplas câmeras, mas estão geralmente fixas. De resto, segue a decupagem tradicional da contuidade clássica. E segue mal. A continuidade intensificada esconde os defeitos de muitos diretores que não fazem idéia de como encenar uma ação. Na continuidade clássica é preciso seguir regras que envolvem o eixo da câmera e a direção do olhar dos atores. Donnersmarck raramente consegue dirigir uma cena de diálogo que não viole pelo menos uma dessas regras. A Vida dos Outros é inepto como cinema. Mas inepto à moda antiga.   

Outubro de 2007

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