eletrônica
Vida de malandros
Mr. Catra, Sérgio Mallandro e uma pitada de ironia
por Andrea Ormond

1. Mr. Catra, uma digressão

Disponível no Youtube, à venda nas banquinhas de camelô, o tosco piloto do reality show 90 Dias Com Catra – sobre o funkeiro carioca Wagner Domingues da Costa, o Mr. Catra – merece indicativo, sem exagero algum, de uma das coisas mais interessantes que alguém já pensou em fazer na TV brasileira. Não pelo formato óbvio, menos pela abordagem quase burocrática, mas sim pela força que emana do discurso protagonizado por Catra e sua família. Na verdade, o que chamamos de família é massacrado, relativizado ao extremo pelas idéias arrojadas (?) do músico. Estamos diante de um homem polígamo, que exige fidelidade de suas mulheres sob pena de não "amá-las". Também vemos as mulheres – fiéis – que adotam o estilo de esposas apaixonadas, sob uma ginástica mental alucinógena. Ah, e alguns dos vinte e tantos filhos, produtos deste arranjo, refletindo a paixão falocêntrica pelo pai. O pai que não é um nome, não é um símbolo difuso, mas sujeito de carne e osso que a todos sustenta e a todos subjuga. Seria Mr. Catra a vanguarda ou o atraso? O amor livre ou o neocoronelismo? Chocante pensarmos que aquele microcosmo poderia estar idêntico no sertão arcaico ou no Rio de Janeiro cosmopolita. É perverso, polimorfo e fascina por ser quase indefinível.

Mr. Catra não vive esta realidade tranquilamente. Prende-se a uma angústia de justificar-se, de explicar o que tornou confuso. Um observador cínico não custa a tachá-lo de imbecil. Mas a burrice e a estupidez, ali, passam longe. Tudo é calculado para beneficiar o grupo. A casa generosa, o falo generoso, o dinheiro generoso, parecem suprir necessidades singulares de felicidade. O contraditório só arde no discurso. Ficassem quietinhos – traíssem o show – os núcleos da família Catra venceriam a racionalidade pela emoção, pela crença verdadeira naquilo que os move. Quero me ater em impressão fortíssima: de que o programa teria muito mais sentido se não pedisse explicações. Porém, não forneceria metade da diversão.

Catra mistura até mesmo um aspecto religioso, redentor, nas palavras, pastiches de machismo e judaísmo. Sua esposa "oficial" clama por mais filhos, mais crianças em casa – mesmo que não sejam suas. Três fãs piriguetes o disputam, uma delas sugere, baixinho: "só meu". Um dos filhos imita sua prosódia, mesmerizado. Outro, chora porque ganhou um videogame. "Papai te ama", diz o funkeiro. Quarenta anos de feminismo desabam na loirinha, quase um bibelô, ressaltando a fidelidade sempre exigida. Ele enrola um baseado, a interpela sobre uma ligação telefônica, depois já está de volta aos braços de outra. "É formado em Direito", baba o empresário. Teve vida de playboy mimado, criado por um casal de posses. Forjou-se Übermensch; ou projeto de Santa Trindade, onde o Espírito Santo é subvertido pelo priapismo constante.

Eu queria ver 90 dias Com Catra balançando o coreto no lugar do Big Brother, o marido olhando a esposa e pensando em colocar variáveis dentro de casa. A esposa inflamada pela idéia de que a repartição do macho pode lhe trazer boas amigas e uma espécie de supra maternidade. Mas, depois, eu quero também uma deusa poderosa, com cinco parceiros habitando o mesmo teto. A propriedade é de todos.

2. Sérgio Mallandro

O humorista, apresentador e entidade sobrenatural Sérgio Mallandro, protagonista de Vida de Mallandro, exibido no Canal Multishow, soa uma antítese de Mr. Catra em um primeiro momento. A mão do roteiro é menos adulatória e mais obsessiva. Grande parte das situações cheiram a coisa montada, embora sem brilhantismo. Acontece que, novamente, a diversão está no olhar dos personagens sobre si. E há outro projeto de família ecumênica: Mallandro mora com a ex-mulher, que responde por Mary Mallandro e cuida dele como se ainda fossem casados. Os três filhos (apenas o mais velho é do ex-casal) gostam do núcleo, sentem-se confortáveis e guardam uma secreta aliança com Mary, na intenção de evitar que o pai case novamente, até mesmo namore. As mulheres que surgem, diferentes da ex, não prestam. O filho mais novo, quando volta para Londres, chora em adoração ao mundo paterno. Não quer partir, acredita mesmo que o regato daquele ninho – junto ao pai e à madrasta que não é madrasta – lhe proporcionaria uma vida feliz.

Octávio de Faria, em sua monumental Tragédia Burguesa, repisa os limites da culpa, da experiência kierkegaardiana, do quase delírio que a angústia moral fornece. Sempre recordo Octávio de Faria quando preciso fazer um comparativo entre o Brasil de hoje e o das priscas eras do século passado. O leitor deve estar se perguntando: aonde ela quer chegar? Entre Catras e Mallandros, percebemos que a dissolução da "velha família" não trouxe propriamente horror ou tristeza. São situações exuberantes, virtuosas. Deixam as crianças contentes, machos e fêmeas satisfeitos. Se eu fosse militante de qualquer causa, usaria estes exemplos para chancelar adoções exóticas, uniões civis do borogodó. Ninguém enlouquece por não ter pai de terno e mãe de avental. O que grila são as hipocrisias, as zonas escuras do ser. Onde não há conflito, existe saúde. Patético é simular estas conclusões na vida pseudo real, enquanto a teledramaturgia e o cinema ainda engatinham nas homossexualidades de salão.

Mr. Catra é homem-controle; Mallandro, liberdade. Fica nu na frente da filha ("Eca!", diz a patricinha quase inglesa). Aceita o reinado de Mary sobre sua vida pessoal e profissional. Basta perceber que está sendo filmado que renova seus votos de "Gluglu, Yeah Yeah!". O Rio de Janeiro litorâneo é uma religião a ser seguida. Assistimos a cenas de Menino do Rio (1981), de Mallandro na Praia do Pepino, do mar azul na varanda da casa. Sim, como em todo reality que se preze, existe uma casa central, soberana. Mallandro e Mary a reformam constantemente. São o casal Marcelo e Eleonora, em O Desejo (1975), de Walter Hugo Khouri: "A gente se agredia através da construção. E ficou inacabado, como tudo entre nós (...)". Só que às avessas. Renovando a casa, reforçam a relação. Inacabada?, porém sólida.

Semideus da geração trintona, que começa a mandar no país, Mallandro usa e abusa deste direito divino. Lembra um daqueles roqueiros dos anos 1950, que se apresentavam em Las Vegas, turbinados e inquietos, nos 70. Conta as mesma histórias de vinte anos atrás – inclusive aquelas do padrasto general. Mallandro tem consciência – e nesse ponto é tão inteligente quanto Catra – de que o conforto material mantém os seus unidos, trabalhando a seu favor. Também parece ter uma certeza secreta de que a nostalgia ploc salvou sua vida, mas precisa afirmar-se na linha showman para não virar um sub Fofão. Disputa espaços no "stand up". Rafinha Bastos deve observá-lo como o Led Zeppelin olhava Bill Halley cantando “Rock Around The Clock”.

Incomoda no programa a tentativa de mitigar o aspecto brega, popularesco, que sempre rondou Sérgio Mallandro. Oriundo de O Povo na TV, do Show de Calouros, protagonista de um clássico do Beco da Fome – As Aventuras de Sérgio Mallandro (1985) – intérprete de hits absurdos, desenhado em gibis sinistros, esmerilhou íntimas relações com o Brasil profundo, tanto quanto colegas do naipe de Gretchen e Wagner Montes. O roteiro, no entanto, prefere ligá-lo à Xuxa, ao universo estrelado da Globo. Idiossincrasia bem anos 2000, rouba da mão dos nerds – que choram ouvindo “Eva” do Rádio Táxi, ou a trilha sonora de He-Man – aquilo que já haviam surrupiado das empregadas domésticas, poderosas formadoras da opinião infantil nos anos 80. Entrega Mallandro de bandeja à – contradição em termos – pasteurização hipster. Não duvido que em breve ele reapareça, melancólico, entre discos do Richard Cheese e DVDs do Family Guy. As empregadas copacabanenses tornaram-se apenas um retrato na parede (coladinho com durex), mas como dói!

Livre de tais amarras, do patronato inter-tribos, o humorista renderia horrores. Perde-se ótima chance de investigá-lo enquanto fenômeno, bem mais complexo do que o cinquentão driblando a aposentadoria. A presença da mãe e da irmã, por exemplo, são daqueles momentos únicos. A gênese do personagem está inteira na progenitora surreal. Infelizmente o show é seletivo, vende caro qualquer naturalidade. Em certas passagens (inclusive na visita de Narcisa Tamborindeguy), deixa a impressão de que contrabandearam Mallandro para um quadro de Mulheres Ricas.

Supracitada, a necessidade de higienizá-lo coloca a filha, por exemplo, dizendo o quanto ele abomina drogas. Pode até ser verdade, quem se importa? Catra é muito mais instigante: construindo seu jererê e dando lições moralistas na esposa loura. No episódio 8, Mallandro também ganha uma blond bombshell, que de início se faz de misteriosa, evitando mostrar o rosto. Termina convencendo o parceiro a depilar-se. A moça, apesar da caetofobia, interessa ao filho mais velho, que pede ao pai para mostrar a barriga (?) como se praticassem algum ritual samoano. Low profile, talvez caiba melhor em Sérgio Tadeu a epítome da malandragem, do que no pai saltimbanco, carregador de pianos.

Assisti a Vida de Mallandro até o episódio 12. Tanto nele quanto em 90 Dias Com Catra, ou mesmo em Mulheres Ricas, fica evidente a tentativa de se espremer um ethos, atmosferas autocentradas que o senso comum admira ou aprova. Poses, atos falhos psicanalíticos, direção invasiva, repetição de esquemas, são tão reveladores quanto as figuras em si. O épico sobre Mallandro é o campeão destes artificialismos; Catra, apesar de pirar na batatinha, um azarão, grata surpresa. De qualquer forma, reality shows devem sempre ser digeridos com uma ponta de ironia, assim como ler ou escrever a respeito deles. No futuro representarão um almanaque curioso, datadíssimo. A transcendência do gluglu crescerá em revisões históricas e ilações tonitruantes. 

Julho de 2012

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