Vício e Beleza (Betelnut Beauty/ Ai Ni Ai Wo),
de
Lin Cheng-sheng (Taiwan/França, 2001)
por Cléber Eduardo

Taiwan, virada de século

Vício e Beleza é um amontoado de situações aparentemente sem conexão sólida na criação de sentidos - mas, na soma de seus fragmentos comprometidos com a aproximação fenomenológica, percebe-se claramente os núcleos dramáticos e sua função de detector de um momento de sociedade.

Os núcleos dramáticos giram em torno de uma love story situada na periferia do capitalismo e no submundo do crime leve de Taipé (Taiwan), tendo como protagonistas um jovem do interior com o desejo de inserir-se no sistema produtivo como desenhista e uma moça burguesa brigada com a mãe e envolvida em comércio ilegal de rua. A função de detector de momento de sociedade é perceptível no progressivo deslocamento do rapaz e da moça no atual momento de sua sociedade, ele por não conseguir viver de sua vocação e ter de se virar (primeiro fazendo pão, depois na delinqüência), ela por não se adaptar a uma inesperada carreira de atriz, cantora e modelo – única e exclusivamente porque tem uma bela aparência para ser vendida. No midiático e imagético capitalismo de Taiwan, no qual ela precisa vestir-se como prostituta para seduzir compradores na rua com olhos também voltados para decotes e saias curtas, os dois pombinhos não encontram seu lugar.

O filme faz parte de um projeto mais amplo, chamado Tales of Changing China, composto de seis longas-metragens sobre os efeitos das mudanças econômicas em Taiwan, Hong Kong, Xangai e Pequim, que gerou desde Bicicletas de Pequim, de Wang Xiaoshuai; a Passagem Azul, de Chih-yen Yee (para ficarmos nos lançados no Brasil). Mas essa relação dos personagens com a atualidade de sua sociedade não deixa de carregar algo de passado imediato – no caso, o de Taiwan, no marco zero do novo século. Isso porque, embora só tenha estreado agora entre nós, o filme já tem seis anos “de idade”.

É preciso empreender uma contextualização estética e histórica de suas imagens para não se correr o risco de tomá-las como documento estético e histórico de um momento atualíssimo do cinema de Taiwan. Afinal, o próprio diretor Lin Chen Shen, que já havia dirigido quatro longas antes (A Drifting Life/1996, Murmur of Youth/1997, Sweet Degeneration/1998, March of Hapiness/1999), fez mais um depois (The Moon Also Rises/2005). Só para situarmos a criação artística em seu devido momento, Vício e Beleza teve estréia mundial no Festival de Berlim de 2001, tendo como competidores obras como Intimidade, de Patrice Chereau; O Pantâno, de Lucrecia Martel; Traffic, de Steven Soderbergh; e o próprio Bicicletas de Pequim – alguns deles já assimilados como referência para o contemporâneo, mas não mais sintomas ou apontamentos de um instantâneo estético e histórico.

E quais as marcas de Lin Chen Shen naquele alvorecer de século XXI, quando nenhum cineasta podia mais filmar na Ásia sem levar em conta Hou Hsiao Hsien e Tsai Ming Liang. Não se pode pegar a régua e o compasso para traçar uma linha reta sucessória, até porque a dinâmica empreendida por Lin Chen Shen é bastante distinta das dois outros autores. No entanto, se não é quase arquitetônico na relação com os espaços, como Hou e Tsai, Lin não nos deixa esquecer de sua disposição de estilizar sua observação social, tanto puxando a luz para um tom salmão como adotando a câmera baixa, eventualmente, ou próxima dos atores, freqüentemente, explorando procedimentos mais ou menos em voga seis anos depois.

Há um esforço para procurar uma proximidade com os personagens de tal modo que um olhar sobre a situação deles não pareça ignorar suas percepções. É justamente quando abre mão de significar alguns momentos para se deter no fluxo da própria experiência que Vício e Beleza traz algo para a imagem tão ou mais forte como sinal de seu tempo e de seu meio quanto a leitura de realidade proposta não sem sutilezas pelo roteiro. O aparente acúmulo de situações desconexas constrói um tecido de atmosferas bastante reveladoras do mundo onde se filma – ou ao menos inventa uma impressão de revelação ao inventar um mundo com seu recorte, evidentemente a partir de um mundo concreto (Taiwan, século XXI).

No entanto, Lin Chen Shen, em vez de acreditar no sentido construído pelo acúmulo dos fragmentos fenomenológicos, apela para a psicologia. A protagonista feminina carrega o trauma da separação dos pais e agarra-se a essa fragilidade para justificar seu padrão de comportamento. Talvez o diretor procure nessa construção de personagem trazer mais uma informação social a acometer a nova geração – o fim da família sólida. Porém, como justificativa de atitude, é ralo. Quase uma fórmula para procurar dar conta das bulas das ações. Para um filme empenhado em mesclar a crueldade de sua visão para a juventude no capitalismo asiático, com alto grau de desencanto, sem perder de vista a carga de beleza contida nas vivências afetivas e efêmeras, Vício e Beleza apenas se atrapalha com essa tentativa de explicar sua personagem.

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