Viajo
Porque Preciso, Volto Porque te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (Brasil,
2009) por Fábio Andrade
O apocalipse em pureza
É curioso que a Mostra de
Tiradentes de 2010 tenha decidido homenagear Karim Aïnouz usando, em sua própria
apresentação, de uma impressão corrente que o caracteriza como um “cineasta do
afeto”. Pois se temos neste Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo,
filme realizado em parceria entre Aïnouz e Marcelo Gomes, planos que justificam
este olhar para o cineasta como alguém que nutre um carinho particular
por suas personagens (pensemos nos retratos de pureza iconográfica dos romeiros,
ou de duas caixinhas de música, ou da prostituta que quer uma “vida-lazer”, ou
do sorriso da camponesa montada em pau-de-arara; ou pensemos no plano sem qualquer
função narrativa de um rapaz fazendo cócegas em uma criança), a estrutura do filme
serve, ao mesmo tempo, como uma jaula, um aquário de laboratório (ou de museu)
onde vemos personagens condenadas à imobilidade, à monotonia, a uma dulcíssima
resignação. Viajo Porque Preciso
parece boiar na indisposição do plano final de O Céu de Suely (ou mesmo
na latência sem futuro do final de Cinema, Aspirinas e Urubus), em que
a personagem de João Miguel vai atrás do ônibus que leva seu amor, mas que o filme
sente a necessidade de mostrar em desistência: vai e volta, abandona logo, não
enxerga possibilidade de mobilidade, de buscar, de fazer acontecer. O carinho,
portanto, é um alívio pontual para um niilismo nem sempre produtivo, onde a doçura
de aspartame vem como um pequeno momento de suspensão que traz às personagens
um aftertaste amargo, e do qual elas não conseguem se livrar.
Viajo
Porque Preciso, Volto Porque Te Amo tem um aparente extremismo em sua estrutura
e modo de produção: imagens em super 8 captadas em 1999 (que renderam, também
em parceria com Marcelo Gomes, o curta metragem Sertão Acrílico Azul Piscina)
servem como impulso para um roteiro e uma nova filmagem, que promoverá novas articulações
e sentidos para aquele primeiro material. Muito como nos filmes de Marguerite
Duras (India Song, O Navio Night), ou como em News From Home
de Chantal Akerman, Karim Ainouz e Marcelo Gomes descolam a diegese
das imagens da do som, onde, além de efeitos sonoros, ouvimos uma espécie de diário
sonoro na voz da personagem. Mas
se em Duras e Akerman o voice over ganhava um impulso libertador justamente
pelo apartamento completo do que se ouve daquilo que se vê, aqui ele funciona
como uma camisa de força de dramaturgia, que tentará a todo custo conformar aquelas
imagens e sons a um caminho reiterativo, onde os simbolismos invariavelmente se
perdem em excesso (um personagem que “mede as fraturas” do terreno e de sua própria
alma; um sonho em que um médico tira pedaços da mulher amada de dentro da cabeça
do narrador; o uso das canções) por nunca serem de fato confrontados. Atropela-se,
com isso, a velha lição eisensteiniana da montagem dialética, onde a soma
de elementos opostos produziria um terceiro sentido para o espectador, que não
estaria contido em nenhuma das duas partes originais. Não há, como em Lá-bas,
de Chantal Akerman, a possibilidade de olhar pela janela e deixar o pensamento
escapar para sentimentos que não estão na imagem, mas se colocam a partir dela
por motivos que permanecerão misteriosos e, por isso mesmo, fortes. Em Viajo
Porque Preciso, o som responde às imagens que, por sua vez, respondem ao som.
Os sentidos são apreendidos em um círculo vicioso de monotonia. Existe,
porém, sempre essa área de escape do “ponto de vista”, que empurra a responsabilidade
para o colo da personagem (que, naturalmente, é criação dos diretores). Muito
como Polícia, Adjetivo, de Corneliu Porumboiu, Viajo Porque Preciso
tem essa integridade, essa coerência formal que parece dificultar o contato mais
visceral com o filme, escondendo-o atrás desse primeiro arcabouço que, em toda
sua coerência, se previne de ataques mais frontais. “Não aguento a idéia de ficar
só”, diz em certo momento a personagem-voz de Irandhir. Suas falas vêm como salvaguardas
para as opções dos diretores, seja para justificar escolhas que lhe parecem externas
(logo no começo ele diz fazer contato com certos habitantes porque isso é parte
necessária para o trabalho – enquanto parece, muito mais, um enxerto necessário
para que o filme exista, temendo a improbabilidade de se exercer essa “doçura”
exclusivamente sobre rochas e acidentes tectônicos, sem as prostitutas, as crianças,
os rapazes que exalam testosterona), ou para eximi-los da responsabilidade de
um projeto (é a personagem quem está presa em sua própria angústia, e o filme
apenas lhe é fiel). O
que sobra é essa iconografia de sentimentos contrapostos, do amor e do abandono,
da radicalidade e da brandura, da aspereza do sertão e do calor mole das putas:
um colchão de palha seca coberto por xita florida, um posto de gasolina envolto
em nuvem de poeira seca, uma estrada quase sempre filmada como confinamento ao
plano, raramente como expansão da vista e da potência do futuro. Viajo Porque
Preciso é, de certa forma, um anti-The Brown Bunny, pois onde Vincent
Gallo criava espaços vazios que convidavam o preenchimento (e lembremos, aqui,
da cena em que Gallo dirige sua moto no deserto até desaparecer no horizonte,
e como ela se relaciona à ida-e-volta de João Miguel no final de O Céu de Suely),
Ainouz e Gomes eliminam esses espaços com a reiteração, com essa crença que a
imobilidade é ainda uma forma de vida que, mesmo precária, ainda é mais do que
o mergulho no abismo. Quando o filme chega, porém, à cidade
que vai ser inundada pela transposição das águas, a polaridade é invertida. A
câmera se solta, correndo sobre as escadas, e aos poucos vemos a personagem se
libertar do apocalipse que os diretores inventaram para ele, e fala sobre coisas
tão banais quanto essenciais: a vontade de comer sanduíche de filé, de ver o Fortaleza
voltar a ganhar, de se jogar no mar com a plasticidade e a coragem dos saltadores
de Acapulco. Embora a licença poética que vai de fato ao México tenha seu tanto
de grosseria, nesta sequência das escadas Viajo Porque Preciso conquista
uma vida que, com imperdoável coerência, parecia sempre expulsa da duração do
filme. Não chegamos ainda a um projeto, de fato, mas pelo menos ao reconhecimento
da necessidade de se mover, de romper a imobilidade que aprisionava um futuro
que, antes de ser trágico ou brilhante, parecia excitante aos olhos de Hermila,
comprando seu bilhete em um guichê de rodoviária. Apresenta-se, enfim, a chance
de mudar de nome, de se movimentar, de tomar um pouco de sol. A imobilidade, esse
mal do século ao qual o cinema vem se dedicando em enorme escala nos últimos 50
anos (pensemos em Antonioni, em Tsai Ming-liang, em Wim Wenders, em Bertolucci),
não parece em nada mais branda, mas ao menos começa a deixar ver uma possibilidade
de andar, de se mover em outra direção que não seja em círculos. Janeiro
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