Vestido de Noiva, de Joffre
Rodrigues (Brasil, 2005)
por Eduardo Valente
Assombrado
por um mito
A informação é mais que conhecida, mas não custa
relembrar: quando estreou em 1943, a peça de Nelson Rodrigues,
sob direção de Ziembinski, foi um marco revolucionário no teatro
brasileiro, considerada a entrada deste na sua fase moderna. Suas
inovações abrangiam desde a parte técnica (a iluminação usada
com um detalhismo desconhecido), passando pela concepção do espaço
cênico (o uso de três níveis diferentes para misturar presente,
passado e fantasia), chegando ao trabalho dos atores e o texto
rodrigueano (com uma pegada mais naturalista – não no sentido
que o termo possui hoje, mas em comparação ao teatro de então).
Uma peça de tamanho peso histórico inevitavelmente finca raízes
no seu tempo e meio de difusão, e neste sentido não nos parece
por acaso que ela tenha ficado quase 60 anos sem ser adaptada
para o cinema, quando tantos outros textos de Nelson foram.
Pois bem, quando hoje Joffre Rodrigues (filho
de Nelson) se impõe a tarefa de fazer esta adaptação, não é sem
inúmeros problemas que ele precisa se defrontar. Entre eles, não
se trata do menor a questão da motivação: se Nelson e sua escrita
encontram-se hoje tão incrivelmente deglutidos pelo cinema/teatro/TV
brasileiros, é claro que não se pode pensar que uma adaptação
de um texto dele de 60 anos atrás possa ser “revolucionário” por
si. Pois, se o filme Vestido de Noiva não quer inovar (e,
a julgar pelo que vemos na tela, ele não quer mesmo), o que motiva
sua realização exatamente? Porque contar essa história passada
na passagem do século 19 para o 20 em plenos anos 2000? O que
este determinado material tem a somar ao conjunto das imagens
em movimento de hoje?
Na tela, não encontramos vestígio de entendimento de uma razão
que venha do material e da sua forma como filme. Resta-nos então
a motivação pessoal: justamente a filiação de Joffre Rodrigues,
o desejo de eternizar o texto do pai nunca visto no cinema, a
devoção à uma obra. Pois é isso mesmo que vemos ao longo das quase
duas horas de Vestido de Noiva: uma longa elegia a uma
obra que possui dimensão histórica inegável e imutável, mas que
desfila como um dinossauro antigo pelo cinema de hoje, especialmente
porque muito mais importante que uma determinada realidade, um
determinado personagem, ou uma determinada ambiência, o que o
filme quer encenar é o texto em si, tentando criar “momentos-Nelson”
duradouros a partir de um clássico inconteste. Com isso, a encenação
toda possui o sentimento de um passeio no museu, onde paramos
para apreciar um diálogo aqui ou acolá, uma expressão de ator
eventualmente. Mas, não nos enganemos, não se trata aqui de um
museu de arte contemporânea: tudo aquilo já está mais do que catalogado,
colocado no escaninho da História da Arte brasileira.
A
partir desta constatação, não se pode exatamente falar em fruição
de Vestido de Noiva, que nos faz sentir o peso de cada
um de seus minutos – no que não ajuda uma montagem sem qualquer
senso de ritmo interno, que se alonga em seqüências sem motivo
aparente, para soar incrivelmente corrida no desfecho. O filme
não parece fazer qualquer tentativa de nos aproximar daqueles
personagens, tão somente convidando a que assistamos os esforços
de um grupo de atores em interpretar personagens clássicos. Simone
Spoladore parece tentar uma caracterização mais psicologizante
de sua Alaíde, mas o resultado soa especialmente estranho quando
cercado pelas teatralíssimas Marilia Pêra e Bete Mendes. Claro,
o texto de Nelson está longe de ser naturalista no sentido cinematográfico
de hoje, e lida muito com as questões de construções de fantasias.
No entanto, falta ao filme uma definição mais clara de registro
– mesmo que seja na alternância destes. O resultado é que parecemos
ver atores em interpretações-solo, mesmo quando contracenam.
Curioso paradoxo este em que uma peça famosa pela
sua modernidade resulta em um filme tão anacrônico – e ainda mais
estranho se complementamos com o fato de que a peça chamava a
atenção pelos seus aspectos cinematográficos nos anos 40, enquanto
o filme agora soa tão inapelavelmente teatral. Tudo isso faz ver
que a questão da passagem de registros (e, em última instância
da passagem de 60 anos de linguagem – cinematográfica e teatral)
não parece ter sido solucionada a contendo pelos realizadores
do filme, talvez principalmente por uma excessiva preocupação
em “fazer jus” à História do texto – o verdadeiro fantasma que
assombra o filme.
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