debate
Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra
(Brasil, 2005)
por Cléber Eduardo
A meteórica passagem de Veneno da Madrugada,
de Ruy Guerra, pelas salas do Rio e São Paulo, prejudicou a elaboração
dessa crítica. Tendo visto o filme na semana de sua estréia, seis
semanas antes de escrever esse texto, a memória das imagens apóia-se,
não sem risco de imprecisão, na fidelidade às impressões iniciais.
Não houve possibilidade de se retornar às tais imagens, tampouco
se teve o conforto, ainda que movediço, de uma proximidade entre
o filme visto e o texto. Cabe assumir essa dificuldade, sobretudo,
porque, na crítica que nos interessa aqui, revisões são fundamentais
– tanto podem corrigir caminhos da análise como reafirmar constatações
na volta à tela.
Isso não impede o crítico de, a partir de um pequeno
esboço de pensamentos (disponibilizado para a leitura no blog
Queimando o Filme desde o dia 23 de março), retornar a Veneno
da Madrugada. Uma primeira pergunta mental feita a Ruy Guerra,
ainda na sessão, é motivada por uma relação da obra com o nosso
presente: o que essas situações e esses personagens, filmadas
dessa maneira e interpretadas desse modo, diz e expressa da contemporaneidade
– do Brasil, do mundo, do cinema?
A pergunta tem um ar de cobrança, de exigência,
mas isso só existe porque, desde o primeiro plano, Veneno da
Madrugada apresenta-se, incansavelmente, como uma declaração
de ambições. Nada mais natural, portanto, que se aguarde dos ambiciosos,
por princípio, saltos maiores. Não se pode esperar de um filme
como esse, já iniciado como uma coleção de cartazes a anunciar
sua identidade estética, apenas o relato de uma historinha. Tudo
ali, o tempo todo, é encenado como uma visão alusiva sobre o mundo,
com uma prática empenhada em estabelecer uma visão de cinema.
Cria-se uma atmosfera de “obra que tem algo de grande a revelar”.
Alguns filmes com essas características podem
sair-se bem ao levar a cabo suas pretensões e suas estratégias
para expô-la. Embora não seja avaliação compartilhada com os outros
dois editores de Cinética, tomo como exemplo o caso de Luiz Fernando
Carvalho em Lavoura Arcaica. No filme de Carvalho, porém,
a revelação prometida pelas imagens, pela carregada poesia visual
delas e do encadeamento com o fluxo mental-verbal, era de ordem
mais abstrata e menos umbilical com a exterioridade. Já Veneno
da Madrugada, longe de se concentrar no útero, na mente e
no coração de personagens e de seus espaços, visa o ambiente mais
amplo. Está interessado na comunidade, no conjunto de figuras
humanas, no teor representativo delas, não sem carga metafórica.
Então se espera de um filme assim estratégias
de alinhamento com seu tempo, pela escolha dos conflitos e pela
forma empregada para representá-los. Ruy Guerra situa esses conflitos
em uma pequena cidade situada de forma rarefeita no tempo e no
espaço – menos a reprodução de um lugar específico e mais um ambiente
mítico, que, por não ter identidade e tempo fixos, ganha sentido
de “qualquer tempo e lugar da América Latina”.
Nessa panorâmica pela comunidade, desenvolve uma
série de intrigas, fofocas, acusações e suspeitas, criando-se
um universo policialesco, investigativo, onde todos são culpados
até provar inocência. Salvo engano grosseiro, esse universo comenta
pela alegoria um clima muito próximo do Brasil de 2005-2006. Isso
pode até ter acontecido sem intenção – até porque o roteiro é
anterior aos casos Waldomiro e Mensalão. De qualquer forma, ao
escolher seu caminho, que, como lembrado por Ruy Gardnier em um
fórum de discussão virtual, é próximo de O Corvo, de Henri
Georges-Clouzot, Guerra toca o “aqui-agora”, mas apenas porque,
segundo seu estatuto de representação de tempo-espaço, faz do
“agora” uma continuidade de todos os passados e futuros, assim
criando uma lógica de permanência histórica nos conflitos desse
espaço mítico latino-americano.
Mas de que modo se mostra isso? E são as estratégias
visuais (luz berrando para ser admirada como o supra sumo da fotografia
artística), somadas à construção cênica dos atores nos ambientes,
a um alegorismo empoeirado e a um não realismo impotente em seu
estranhamento, que asfixia Veneno da Madrugada. Não se
está condenando aqui a desobediência em relação a qualquer convenção,
nem se pregando uma maneira certa de filmar aquele material, mas,
sim, propondo-se uma reação às características mais problemáticas
do filme, ao menos segundo a experiência e os critérios do crítico.
Um desses critérios é da ordem do tom, considerado
afetado demais e atenuador de qualquer contundência almejada.
Em sua maneira grave e formalista de colocar as pessoas e os espaços
na tela que o filme parece tomar o caráter onírico-fabular de
Gabriel Garcia Márquez e criar uma marca de “cinema de arte latino-americano”.
E esse “cinema de arte”, em matéria de representação de questões
políticas (algo a não se perder de vista quando o filme propõe
sua manipulação do tempo), transpira impotência. Escancara uma
dificuldade de compreensão do mundo, mas sem a indignação (quase
esperneante) ou a intensidade na confusão do entendimento, como
se notava em Estorvo. Como cinema político, é cinema de
diagnóstico da metástase, já com encomenda da extrema unção.
Não se trata de condenar o autor por sua visão
de mundo, tampouco colocar suas opções estéticas no sarcófago
das formas caducas, pois isso seria aderir a uma idéia de processo
evolucionista determinado por critérios x ou y. Importa aqui perceber
em Ruy Guerra um cineasta que tem criado pistas e simbolismos
em suas narrativas, com apreço pela desespacialização, de modo
a não se tratar nada de frente com o real – desde A Queda,
salvo engano. E faz isso sempre com opções estéticas que desconectam
seu mundo do mundo inspirador, transformando as alusões a esse
em teatro de marionetes sem o sopro da vida na representação.
E a representação, assim, vira puro código. Isso talvez seja fruto
mal digerido de seu vínculo com o cinema moderno, com o lado rarefeito
do cinema de autor europeu dos anos 60, e com o lado metafórico
do cinema brasileiro dos 60—70; mas talvez também seja uma forma
de colocar filtros no que está querendo mostrar do mundo, seja
indo a Gabo, seja indo a espaços míticos, seja emoldurando seu
ambiente enlameado com uma luz agressivamente bela.
editoria@revistacinetica.com.br
|