A Última Amante (Une Vieille
Maitresse), de Catherine Breillat (França, 2007) por
Lila Foster
Das aparências à carne Respondendo
a uma pergunta levantada em um debate durante o Panorama do Cinema Francês sobre
a sua faceta sempre “polêmica e incômoda”, Catherine Breillat definiu bem a maneira
como sua adaptação do romance A velha amante de Jules-Amédée Barbey d'Aurevilly,
ambientado na França do século XIX, tem uma feição tão contemporânea, mesmo sendo
um verdadeiro filme de época. Dizia ela que o mundo parece ser sempre extremamente
conservador, mas ao mesmo tempo, sempre viveu sob o encanto do amor romântico
e violento no estilo Romeu e Julieta. Inconformada com o conservadorismo, mas
entendendo o ideal romântico como algo quase inescapável, sua experiência de vida
parecia, nas suas palavras, ser sempre algo deslocado. Esse sentimento da diretora
não deixa de transparecer para os seus filmes, pois a experiência de sua recepção
pode ser facilmente definida como uma experiência de deslocamento. Não no sentido
espacial, mas na forma como a vivência radical da exposição do corpo e do sexo
não permite entrever nenhum terreno minimamente seguro. Os personagens amam de
maneira torta, se desejam sem limites, e nunca são capazes de agir “positivamente”.
De força destrutiva, o amor é exibido sempre como uma clausura: os personagens
de digladiam com seus corpos agonizantes de desejo, um desejo que se realiza através
do sexo e da dor. No filme em questão, Ryno de Marigny, interpretado
pelo estreante Fu'Ad Ait Aattou, é um belo jovem aristocrata com a imagem marcada
pelos seus amores fortuitos e que alimenta uma intensa relação amorosa com espanhola
Vellini (Asia Argento, fundamental para a potência dos sentimentos evocados
no filme) mesmo às vésperas do seu casamento com a rica e virginal Hermengarde
(Roxane Mesquida, também atriz de À ma soeur). Este pequeno entrecho nos
chega aos ouvidos logo na primeira cena do filme durante um diálogo entre um marquês
e sua esposa cercado de reprimendas, prataria e serviçais. Além
da impecável recriação dos espaços e vestuário, o filme traz algo que marca o
jogo social de uma época: a obsessiva manutenção da aparência e o incômodo causado
pelos que vivem sob a sombra da corrupção dos valores como fidelidade, honra e
a imagem de um amor castiço; valores esses que mantêm um esquema de classe intacto
mesmo que somente na sua superfície. Nesse jogo de imagens, Ryno aparece primeiramente
como Don Juan desalmado que abandona a desesperada Vellini para usufruir da virgindade
e riqueza de Hermengarde. Abandonando a velha amante para se casar com aquela
que acredita ser o seu novo amor, ele descobrirá que tal ação será incapaz de
retirar a marca da violência do amor que existe entre ele e Vellini. Obstinada
em fazer do ótimo amante Ryno um amor perfeito para a sua neta, a Marquesa de
Flers o convida para um inquérito, mais curioso do que recriminatório, sobre tal
paixão. É neste momento que a narrativa de A Última Amante assume
uma outra dimensão. A história de tal amor é contada por Ryno, à beira de uma
fogueira e regada a vinho do porto, como se o jogo de aparências tivesse que cessar
e dar lugar a história “real”. E, para Catherine Breillat, o verdadeiro destino
do qual nenhum amante consegue fugir é o da carnalidade unida à dor tanto física
como emocional. A recepção dessa história de amor, até então estável pela segurança
que se tem de cada personagem, passa a se tornar extremamente instável. A transformação
na “aparência” dos personagens revela a operação de deslocamento principalmente
no que ela reafirma sobre a complexidade do papel que cada um assume numa história
a dois: o espaço da intimidade também é o espaço onde cada um mostra o pior e
o melhor de si. Aparências
desfeitas, a câmera se manterá em um mesmo registro. Apesar do desespero corporal
tomar conta do que é visto, o quadro será sempre muito bem pensado. A história
do desespero do passado irá de encontro, na estrutura narrativa, ao tempo presente
e à consumação do casamento. A câmera não cola aos personagens e é na incongruência
entre o quadro bem composto, quase sempre fixo, e o movimento destruidor dos corpos,
que se faz perceber a força que aprisiona os três amantes em um triângulo amoroso
que beira a desgraça. Se a conversa pequena continua a ter os amantes como tema,
é porque um quadro conservador não vive sem o encanto pelos “viciados e decaídos”.
E, mais uma vez, Catherine Breillat nos dá um retrato dos sentimentos que não
apazigua em nada. O desejo não segue, como nas comédias românticas mais banais,
um caminho linear, mas sim uma trajetória bastante torta. E isso de alguma forma
dialoga com a complexidade com que cada um se depara quando tem que encarar o
amor, aquele de verdade.
Julho de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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