in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Um Filme para Dirceu, de Ana Johann
por Fábio Andrade
![](img/umfilmeparadirceu.jpg)
Um filme de Ana
Um Filme para Dirceu começa com dois sujeitos fantasiados
de caubói. Um deles veste uma camisa dourada que grita
protagonismo; o outro incorpora o matuto que servirá como
Sancho Panza, bom parceiro de aventuras exatamente por sua incapacidade
de ver os moinhos como dragões. O sonhador da camisa dourada
convence o amigo a fugir daquele mundo e ir buscar a bela vida
tocando gaita de mão. A cena é interpretada com
acentuada tipificação dos atores, como esquetes
do Zorra Total ou do Hermes & Renato. Mas tudo isso é
mediado por um mascaramento difuso que recorta a imagem em “cinemascope”,
um barulho de projetor rodando que toma a banda sonora, e uma
tonelada de falsos riscos em uma falsa película. Tudo é
exposto como falso.
O filme, portanto, começa como farsa, algo que será
reforçado no momento seguinte: já sem os riscos,
o falso projetor em silêncio e uma imagem que adquiriu o
direito de tomar toda a tela 1:1.77 do vídeo em alta definição,
Dirceu – o homem da camisa dourada – fala de como
imagina o filme que ele gostaria de fazer. Entramos em terreno
bastante conhecido do documentário brasileiro recente,
no qual o choque entre documentário e ficção
é capaz de revelar o mundo de um personagem digno do título
de um filme. Mas Ana Johann parece movida, sobretudo, pela necessidade
de usar todo tipo de artifício para demarcar terreno: o
filme de Dirceu é um outro. Este é o filme de Ana,
e os desejos e aspirações do protagonista interessam
apenas enquanto reveladores de sua intimidade – assim como
as personagens cantam nos filmes de Eduardo Coutinho porque se
revelam pelo canto. Em um passeio de carro, Dirceu aponta os lugares
importantes de sua biografia; a câmera de Ana Johann nunca
esboça movimento, concentrando-se somente no rosto do protagonista.
O roteiro de filme que ele propõe é uma mistura
de Um Morto Muito Louco com Superbad, surgido de situações relacionadas à própria
vida, com rumos inventados que reescrevam sua história.
"Tem que ter uns três romances". Cinema, para
Dirceu, é aventura. Mas se é necessário demarcar
terreno, deixar claro na pele do vídeo que o filme
para Dirceu é o filme de Ana, o que seria
o cinema para a diretora? "Você acha que fazer cinema
é fácil?", pergunta ela, enquanto filma Dirceu
deitado ao lado de uma moça nas primeiras horas de uma
manhã de ressaca da intimidade. "E você acha
que tocar sanfona é fácil?", ele rebate. Dirceu
se vira, vê a câmera rodando e pede que ela desligue
logo aquele troço.
Mais de uma vez, Ana Johann expõe casualmente o desejo
de acompanhar Dirceu de maneira mais intensa. Fala em filmá-lo
por vinte anos, em um tipo de aposta de ambição
razoavelmente comum no documentário, movida pela intuição
de que talvez nenhuma ação seja tão importante
quanto a do tempo (e, consequentemente, da morte) sobre o corpo.
Entramos na seara do cinema direto, mas Um Filme para Dirceu
tampouco se concentrará na observação. "Daqui
a pouco vão me filmar até cagando", responde
Dirceu.
Falamos em Eduardo Coutinho, cinema direto, mistura de registro
e de um personagem-título como tantos outros no documentário
brasileiro recente... mas Um Filme para Dirceu já
se insere na perspectiva ultra-contemporânea de um documentário
sem cânones, capaz de absorver diversos paradigmas para
dar conta de uma relação supostamente nova com o mundo. Documentários
que, em suma, se acreditam pós-modernos. Mas esse pós-modernismo
passa, aqui, pela afirmação do sujeito que olha
- uma vez que Ana Johann é também personagem, capaz
de dirigir a ação e o curso da história ao
simplesmente estar presente, como a câmera de Jean Rouch
disparava uma possessão espiritual em Les
Tambours d’avant: Tourou et Bitti.
Quando Dirceu tem a notícia de que um de seus romances
(e a diretora é a primeira a perceber que no documentário
que ela faz provavelmente teremos mais do que três) terminou
em uma gravidez inesperada, diz que foi praga da diretora.
O encontro entre campos é exposto em seu potencial incestuoso, em uma
mistura de subjetividades – o homem-ficção
e a diretora-documentarista – que pode chegar a uma terceira
síntese. Pois se falamos de encontro e de subjetividade,
falamos de um relação regida por parâmetros
mais ou menos claros que valem
para ambas as partes envolvidas. “Questão de justiça
social”, diria Miguel Gomes. Mas a mistura, aqui, é
força de um acaso que precisa ser controlado. Nesse sentido,
é bastante expressivo que Ana Johann responda a um instinto
de aparecer no vídeo, mas quase todo o tempo esse encontro
com Dirceu na imagem se dá apenas fora da imagem,
em conversas por telefone em que a diretora se filma em seu gabinete.
Mais expressivo: são raros os momentos em que ela não
está de costas para a câmera.
Se é necessário separar o filme de Dirceu do filme do Ana, para sobreviver a essa separação é também necessária uma entrega, um devassamento da intimidade de quem olha, e que esse devassamento seja, no mínimo, proporcional ao ritual de sacrifício selado entre a câmera e quem é filmado. Se filmes recentes como Laura, de Fellipe Barbosa, ganham força na maneira como misturam todo tipo de registro na tentativa de alcançar a representação de uma relação espatifada, isso só é possível porque o diretor está também disposto a se espatifar, se igualar, se expor na desigualdade da relação. Sem isso, restam apenas filmes desiguais, descomprometidos, desinteressantes. Ao contrário do filme de Ana, o filme imaginado por Dirceu nasce da consciência da necessidade de habitar a cena, de se expor, de se comprometer. Mesmo permanecendo não filmado, ao fim da sessão não restam dúvidas de que, por princípio, seria um filme mais justo.
Setembro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |