in loco - cobertura dos festivais
Um Filme Inacabado (Shtikat Haarchion),
de Yael Hersonski (Alemanha/Israel, 2010)
por Juliano Gomes
Um
filme de propaganda
A aposta de Um Filme Incabado para fugir da mesmice ao
retratar o Holocausto é fazer um filme sobre o cinema.
E sua maior falha é justamente como se aproxima das imagens
que mostra. A diretora, mesmo desfilando todas as técnicas
de um documentário "reflexivo" (voz off,
parada da imagem, zoom na imagem, exposição
de vários takes, repetições), se mostra muito
mais interessada nas verdades "por trás da imagem"
do que no que a imagem mostra. O que acaba prevalecendo é
sempre a denúncia e a exposição do horror
nos moldes do "não podemos esquecer" em que se
baseia quase toda a produção audiovisual sobre o
tema.
No filme de Hersonski o que vemnos é
justamente a luta para acabar com uma imagem, para exterminá-la
no que ela têm de mais potente, que é ela mesma,
o que ela mostra. Todo aparato levantado pelo filme se baseia
na crença de que o inédito filme montado pelos nazistas
sobre o Gueto de Varsóvia, O Gueto, foi realizado
a partir de montagem de trechos absolutamente "encenados",
com as cenas reais dos guetos de miséria absoluta dos judeus
pobres. Essa falsa questão (que é a exatamente a
mesma do nada fértil debate ficção x documentário,
que parece cada vez mais em voga, não só por aqui)
impede que o filme esteja a altura do material que trata. Sendo
um filme sobre cinema, o que parece faltar é justamente
olhar pra dentro do quadro, e perceber que toda a guerra, que
todo o horror está refletido nas cenas, inclusive nas mais
prosaicas. Cada imagem do Gueto é um embate, de vida ou
morte, entre quem filma e quem é filmado. É talvez
a única oportunidade de reação daqueles poloneses,
a única oportunidade de fuga, de tomar o poder na imagem
(algo que o 3° Reich soube fazer como ninguém).
Dentre as pilhas de cadáveres e semi-cadáveres
que o filme não cansa de nos mostrar, as mais fortes são
justamente os planos médios de alguns dos judeus a olhar
para nós. Há ali alguma possibilidade de igualdade,
do nível dos olhos, que expressa sua potência na
absoluta ambigüidade que essas imagens contém (de
forma parecida com 48,
de Susana Dias). É um olhar pro inimigo, é encarar
a arma que dispara e devolver a ela o mistério absoluto:
nunca saberemos o que ela pensa, o que ela viu. Esses planos médios
(filmados exatamente da mesma maneira das "imagens de povo"
que povoam muitos dos filmes brasileiros desde Central do
Brasil) mostram o quanto a imagem, ao mesmo tempo que mata,
que esconde, que mente, ela iguala. No momento da câmera
rodando cria-se uma partilha, algum poder é dividido e,
assim, algum sentido se abre, nem que seja por um milésimo
de segundo. Ninguém submete um olhar.
A
busca obsessiva da diretora pelas sobras de filmagem que mostram
o oficial da SS responsável pelo filme acaba por evidenciar
que sua procura é somente pela evidência, pela prova
de que o que vemos não é "a verdade".
Todo seu expediente analítico acaba sendo vão na
medida em que ela não está disposta a olhar para
o filme, e sim para o que está "atrás da porta".
Não percebe que na encenação proposta é
justamente onde esses diretores-opressores mais se mostram. Ao
armar a oposição e a indiferença entre os
judeus pobres e ricos em O Gueto, eles estavam somente
se colocando em cena, fazendo uma encenação de si,
exercendo na imagem esta relação de poder, quase
literalmente. A despeito de suas intenções. Da mesma
forma, guardadas às devidas proporções, o
faz Yael Hersonski, na sua busca pela verdade a qualquer custo,
pela verdade que se esconde atrás da imagem. Sua mise
en scène deseja o tempo todo querer ressaltar o horror,
nos convencer das mentiras nazistas, e de que não deveríamos
acreditar em tudo o que vemos. Quer nos convencer, a qualquer
custo. Faltou justamente enxergar o que estava mais perto e evidente,
olhar para a imagem em si, para dentro do quadro, para o insondável
daqueles olhares, para o que ela diz e para o que ela cala. Falta,
justamente, acreditar na imagem.
Setembro
de 2010
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