Uma Longa Viagem, de Lucia Murat (Brasil, 2011)
por Raul Arthuso

Entre projeções e corpos reais

A rigor, Uma Longa Viagem trata de três jornadas. A primeira e mais evidente é a que a diretora Lucia Murat empreende em sua memória, voltando aos anos 60 e 70 para refazer o percurso de sua relação com seus dois irmãos. A segunda, mais literal, é a jornada pelo mundo de um deles, Heitor, um andarilho sem lugar, enquanto experimenta todo tipo de drogas. Esta segunda viagem é um contraponto à primeira, já que enquanto a trajetória de Lúcia é um retrato dos jovens que se envolveram nos movimentos políticos durante a ditadura militar, a viagem de Heitor é outra, diante de um mundo que não se aceita: o escape. Este discurso, que tem na cultura hippie seu paradigma, tem sido algo marginal dentro da historiografia brasileira sobre a ditadura – enquanto o envolvimento político domina o discurso, inclusive no cinema.

Mas há ainda uma terceira viagem, a de Murat por uma série de temas que são muito próximos do universo de suas ficções: a ditadura militar; a relação da elite com as classes populares; os posicionamentos das pessoas diante do mundo e seu reflexo político, além de um afeto que acaba interditado por essas posturas. É dessa pessoalidade, pela conjunção das três viagens, que sai o que de mais interessante tem o filme. A tentativa de reordenar o afeto a partir do tempo leva ao impasse de tentar estar onde nunca se esteve. Porém daí sai também um das fraquezas do filme, pois a narradora parece não aceitar essa sua ausência. Existe uma pulsão em Uma Longa Viagem de preencher todos os buracos, esmiuçar cada pequeno traçado de Heitor pelo mundo, como se as elipses inerentes à memória e ao “não estar lá” tivessem que ser eliminadas.

Assim, se por um lado as entrevistas de Heitor são o que há de mais saboroso no filme, as leituras das cartas de Heitor encenadas em estúdio por Caio Blat são o que há de mais desinteressante. Isso não se deve à incapacidade do ator, mas ao que a montagem entre o Heitor-real e o Heitor-ficcional explicita: enquanto as entrevistas do irmão da diretora criam uma figura carismática, de intensa identificação com o espectador (com as marcas do tempo expostas e que literalmente se recusa a enquadrar-se pelo plano – se movimentando, esquivando rosto da câmera e com uma fala de ritmo e cadência pouco afeitas ao cinema), as cenas com Caio Blat parecem um movimento de enquadrar esse universo de ausência – como se o ator pudesse dar corpo presente ao tempo/espaço que se foi.

É interessante notar como na maior parte dessas cenas de estúdio o filme utiliza projeções dos lugares visitados por Heitor como cenário. Em frente a elas, o ator tenta transpor as sensações do personagem real transmitidas via carta. Essas projeções parecem o que a palavra indica: um desejo da realizadora de se colocar nessas cenas. Contudo, as entrevistas trazem à frente uma pessoa de espírito inquieto e uma alegria de viver que as encenações negam, com excesso de gravidade. Assim como nas ficções de Lúcia Murat, em Uma Longa Viagem esse peso parece algo inescapável.

Julho de 2011

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