A Última Estrada da Praia,
de Fabiano de Souza (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Sob
o risco da ficção
A Última Estrada da Praia
se destaca de cara do panorama de um "jovem cinema brasileiro"
por fazer, historicamente, esse movimento conservador: o tableau
é trocado pelo plano/contraplano; a estrada deixa de ser fim e
retoma o trânsito original dos road movies; as personagens
voltam a ganhar contornos mais profundos, trocando a auto-suficiência
da presença por uma relação constante com um passado escondido
e sempre influente. Trata-se de um “estranhíssimo” filme
onde há, de fato, personagens, motivações, arco dramático, narrativa,
decupagem e outras convenções cinematográficas que, aos poucos,
vêm sendo trocadas por um grupo mais rarefeito, mas ainda mais
estanque, de novas convenções.
Na
verdade, a intensidade com que o filme faz esse retorno (que,
na atual conjuntura, está bem longe de ser um retrocesso) aprofunda
ainda mais essa estranheza conjuntural: em toda sua aparente leveza,
A Última Estrada da Praia é um filme alegórico, repleto
de simbolismos, com personagens que encarnam valores claros, que
buscam fazer sentido. É inevitável que essa estranheza traga um
refresco como princípio e como fim. No caso, isso acontece por
a vocação narrativa de A Última Estrada na Praia ser levada
a cabo com dedicação e algum grau de inquietude diante do mundo
e do próprio cinema.
No
começo, o que temos é um plano de um personagem deitado na praia
– personagem que o filme creditará, sem reservas metafóricas,
como “desconhecido”. O desconhecido, portanto, é o princípio de
tudo: mudo, anterior a tudo e a todos, com um passado enigmático
mas sempre presente (lembremos que ele carrega consigo apenas
uma nota de dinheiro que não vale mais nada), e sempre disposto
à interação. Quando o grupo de amigos que protagoniza o filme
resolve levar o desconhecido – que, muito acertadamente, permanecerá
como um mistério de opacidade até o final do filme – em uma viagem
à praia, essa simples ação nos diz, de maneira física e suficiente,
o que aquela viagem representa.
Existe, no filme, esse lado de exercício classicista
de nos apresentar primeiramente os índices, para que com eles
possamos “fechar a conta” de tudo que vem em seguida. A clareza dessa
intenção não é, porém, garantia de seu funcionamento. Pois o problema
maior dos filmes narrativos é que eles são extremamente difíceis
de se realizar – e, com o passar do tempo, mais difíceis ainda
de serem feitos com vigor. A colocação da câmera, o momento do
corte, a inflexão dos atores, a construção de ritmo e climas –
tudo aquilo que pode ser auto-suficiente em um cinema mais rarefeito
(é possível fazer filmes calcados inteiramente na colocação da
câmera; projetos de cinema dedicados exclusivamente à precisão
do momento do corte, etc) é de um risco constante no cinema narrativo,
pois cada plano – e cada pequeno elemento dentro dele – pode colocar
a perder todo um fluxo de ilusão construído até ali.
A
Última Estrada da Praia oscila, como
um pêndulo desgovernado e inconsciente de seu próprio movimento,
entre momentos de firmeza e vitalidade, e outros de facilidade
e didatismo. Assim como percebemos uma atenção constante ao momento
preciso do corte e à maneira de se filmar os planos gerais, temos
sequências de diálogo (em um filme muito falado) bastante atabalhoadas,
e uma interação entre os corpos que parece frequentemente travada
pela necessidade de “representar” – como se a encarnação dos personagens
pelos atores não estivesse introjetada o suficiente para que se
possa agir e falar como eles falariam, naturalmente. Da mesma
maneira, o cuidado na tessitura dos climas pela decupagem é muitas
vezes sabotado por um uso de música incessante (há diversas sequências
que melhorariam sensivelmente com a supressão completa da trilha
musical), muitas vezes em uma construção de sentido que beira
o escolar – mais óbvia, o aproveitamento do tema infantil de “Saiba”,
de Arnaldo Antunes (em versão de Érika Machado), para cobrir um
passeio pelo parque de diversões.
A relação com o filme (e, lembremos, o cinema
narrativo se baseia principalmente na fé do embarque do espectador)
é perturbada pela certeza crescente de que uma sequência de absoluta
precisão pode ser sucedida por outra de encenação frouxa, e que
cada momento de vitalidade pode logo ser atropelado por uma lógica
de funcionalismo que não funciona. Ainda assim, é inevitável a
sensação de que há, em A Última Estrada da Praia, uma pulsação
constante – algo que nem sempre sentimos em outros filmes mais
rigorosos e calculados. Não exatamente um ovni – é possível traçar
paralelos com o cinema de Jorge Furtado (em seu melhor, aquele
de Houve Uma Vez Dois Verões) e do carioca Bruno Vianna
– A Última Estrada da Praia é, ainda assim, um filme raro.
Raro pois, quando o que antes era uma quebra se torna uma nova
convenção, é inevitável que uma convenção tenha, também, algo
de quebra.
Setembro de 2010
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