Tropicália, de Marcelo Machado (Brasil, 2012)
por Fabian Cantieri

Qual é a cola que segura isso tudo?

A discussão é boa: como se debruçar sobre a afasia de um movimento? O panteão de documentários musicais brasileiros da última década pode levar a crer que um certo automatismo na forma impreguine novas insurgências, e Tropicália, nesse caso, aparentemente só confirmaria o fluxo. Como Thiago Brito dizia sobre esse nosso passado recente documental, parecíamos ter achado uma boa fórmula para enaltecer nossos dinossauros da música consagrados mundialmente – era quase como se a importância do artista retratado fosse tão grande que isso por si só já bastasse para um bom filme. Mas se aqui não temos um só artista, e sim um movimento, temos menos ainda um movimento solidificado com uma rigidez autárquica de suas diretrizes. Há uma sólida consciência de sua importância histórica, mas nunca uma definição do que seja essa coisa em si. Tropicália não se compromete com uma busca por um essencialismo, mas está sempre à margem de sua identidade, rodeando fantasmagoricamente um morto prenhe e vibrante.

E este morto, antes que atirem a primeira pedra, recebe a última unção de seu próprio criador, Caetano Veloso, ateísta utópico de um tempo enterrado – o tropicalismo, com esse ismo, tão academicista e enclausurante repugnável por ele próprio, havia atingido seu ciclo final com seu exílio junto a Gil. Mas marcas indeléveis daquele tempo de dissonâncias ecoaram farta e fortemente pelas décadas vindouras. O que vemos em 2012, no filme de Marcelo Machado, é um breve atavismo das imagens de então; e o mais impressionante disso: uma rara crença no poder dessa historiografia de arquivo. Isso se dá muito menos pela escolha de preservar os talking heads para a parte final do filme, e mais pelo todo de sua construção, pelo encadeamento de planos – desde o primeiro, que suspende a pergunta fantasma para uma eterna recusa de sua resposta, até o mise en place do exílio, que culmina num plano de uma solidão arrebatadora esgarçada no olhar inconsolável de um Caetano carente de lar. Uma Asa Branca poucas vezes tão representativa de uma vontade de país. Saudade de um passado com futuro.

Porém, entre a imanência da saudade e a contundência da nostalgia, existe um fino traço de vontade apartando esses sentimentos. Se a saudade matamos com o presente vivido, a nostalgia abraça uma vontade de volta a esse passado, um desejo sempre impotente de estar em outro tempo. Em Uma noite em 67, também povoado (e produzido) com imagens de arquivo da Record, temos uma fala quase ao fim do filme de Caetano dizendo que a única saudade que tem é da questão física da juventude e mais nada; e Chico assumindo que não pensa “nessas histórias velhas”, nem mais lembrava de sua canção do festival, “Roda Viva”. Logo eles, os maiores símbolos de uma iconoclastia musical retumbante até hoje, são os primeiros a enxergar a inutilidade de uma volta àquele presente passado. E é aí, neste ponto, que Tropicália cria uma dialética conflitante: ao instaurar um contracampo do passado nos últimos instantes, demonstra sua vontade em evocar uma purgação nos autores por sua própria história. Vemos brotar uma filosofia da história hegeliana, destoante de boa parte da corrente contemporânea que se imiscui pela geografia do presente, na qual o olhar retrospectivo do ego pensante, através de um esforço rememorativo, é internalizado, torna-se parte inseparável do espírito e, assim, tenta alcançar a reconciliação com o mundo - a catarse pela memória de seus feitos.

Mas por que a revelação de Gil chorando ante seu passado? Pois assim contam os homens do mar? Parece realmente um contra-senso fomentar uma nostalgia de um mar morto enquanto, até então, tínhamos uma navegação quase que proustiana, um passado um tanto que colado nesse nosso presente, um Back to Bahia que era, aqui, também agora. O canto tímido de Caetano e o emocionado de Gil nos deslocam desse paralelismo para nos colocar de volta em distância segura, confortável e sentimental de uma velha Bahia. Se o filme se atreve ao risco de falar de um enterro da Tropicália, sabendo que o antropofagismo que ela tanto cultivou é quase uma lei inconteste e in natura de hoje, é porque falar sobre o movimento é algo mutante aos olhos de quem ouve. Ele se reformula. Como diria Gil, é como uma pirâmide circense na qual as mãos de outrora suportam os pés de agora. 

Rita Lee, falando sobre Rogério Duprat, diz ter se encantado quando o conheceu no estúdio pois, logo de cara, ele dizia odiar música. Não seria um ódio produtivo, aquele que se depara com a possibilidade do infinito? Não é justo odiar a tentativa de síntese de um pluralismo quando podemos nos deter ao próprio estarrecimento? Pois o que é a Tropicália senão um ódio ao estanque? Em seus melhores momentos, chegou a ser a revolta de um conservadorismo ufanista, um mergulho identitário num Brasil estrangeiro por si só. Com isso, se tornou um borrão das linhas geográficas que, com suas dissonâncias, mancham qualquer linha de clave. É a potência do irrestrito, o “it” clariciano. Para melhor perscrutar, recomenda-se atentar à própria imagem sonora. Para explicar, como diria Caetano, well...
 

Outubro de 2012

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