história(s) do cinema brasileiro
Tropa de Elite e a crise da propriedade imaterial
por Cezar Migliorin

Leia também a crítica do filme


Um dos grandes desafios intelectuais e políticos hoje é tentar entender as características e possibilidades do que é frequentemente chamado de capitalismo cognitivo. Imagens, idéias, conceitos, experiências, formas de percepção e de vida substituem as mercadorias do capitalismo fordista. O capitalismo baseado no conhecimento e no capital intelectual não é hegemônico no capitalismo contemporâneo – a China, o Brasil e o México são exemplos disso - mas é onde se cria valor: um valor baseado na criatividade e comunicação, um valor que extrapola as competências dos indivíduos e das empresas.

O trabalhador não dedica mais seu tempo à lógica da empresa apenas. Os trabalhadores fordistas só podiam atuar depois de despidos de seus saberes e gestos cotidianos – família, lazer, leituras, hobbies, etc – enquanto no capitalismo cognitivo são estes mesmos gestos que tem valor. Enquanto a industrialização pode ser entendida como um divórcio do conhecimento e da cultura comum, uma vez que o saber cotidiano não era necessário na fábrica, o capitalismo cognitivo refaz esta conexão. Na verdade, as fronteiras entre lazer, diversão, trabalho, casa e empresas tendem a se esfacelar.

A vida como um todo passa a ser parte do que o trabalhador tem a oferecer à empresa ao mesmo tempo em que a empresa não pode cercear as atividades “vitais” não imediatamente funcionalizáveis da vida do trabalhador. Vida e trabalho passam a fazer parte de um mesmo fluxo. Da mesma forma, o consumo contemporâneo se transfere da mercadoria material para a imaterial, uma transição da economia de industrial para a economia da experiência.

Neste novo capitalismo, o que é produzido pelo trabalhador não é algo que se deteriora ao ser consumido. Na indústria fordista, a produção de um bem significava a necessidade de mais matéria prima rara – petróleo, ferro, cobre. No capitalismo cognitivo, a matéria prima – conhecimento, comunicação e informação – aumenta quando são consumidas. Consumir e produzir conhecimento passam a ser atividades contíguas, inseparáveis. A maior matéria-prima é o conhecimento que é gerado de graça, pelos próprios consumidores. A internet é exemplo maior. Este processo é parte de uma lógica de abundância que tende a levar uma parte importante da economia para a gratuidade e, necessariamente, para a diminuição do dinheiro em circulação e do lucro.

A pirataria é exemplo paradigmático. Ela coloca em xeque o lucro sobre o trabalho imaterial – da Microsoft, da Nike ou Puma, da Louis Vuiton, da Daniela Mercury (EMI), da Roche ou do José Padilha/Universal Pictures. Ou seja, ela coloca em xeque as fronteiras que as empresas de ponta no capitalismo digital tentam impor ao acesso democrático.

Segundo André Gorz, empresas de marca hoje gastam mais dinheiro tentando manter o monopólio sobre seus conhecimentos do que na invenção ou produção de seus produtos. A tentativa de manter o monopólio do conhecimento configura-se assim em uma crise definitiva de um tipo de capitalismo fundado na noção de propriedade inventado com a era industrial (sec. XVII e XVIII), que dá “o direito de excluir” (Crawford MacPherson)

Se no final do século passado o artista liberou sua obra da sua presença com a reprodutibilidade técnica, como a literatura há muito já fazia, a pirataria na era digital leva esta desconexão do trabalho material do imaterial ao limite. A pirataria não aceita que o capital privatize o conhecimento. O usuário não aceita mais ser excluído do consumo de um bem imaterial e de matéria prima abundante. A pirataria grita: o conhecimento é um bem comum, por isso copiamos. De maneira geral, ela não é um roubo, mas uma forma de disponibilizar para todos o que só uns poucos teriam acesso.

Mas não nos enganemos, ser a favor ou contra a pirataria é uma falsa questão. Ela existe porque criamos as condições técnicas e sociais para sua existência, e essas condições nos interessam. Resumir a pirataria a uma atividade criminosa é a melhor maneira de defendermos poderes anti-democráticos, mas ao mesmo tempo ela não resolve os problemas do capitalismo contemporâneo. A pirataria nos coloca um desafio complexo, que deve implicar uma grande parte da sociedade, e o Brasil tem condições de atuar de maneira absolutamente pioneira em um dos mais importantes debates que se apresenta. Este debate implica uma revisão das noções industriais de propriedade, um debate imposto pelas ruas.

* * *

Pois chegamos ao caso de Tropa de Elite e o sucesso do filme não-finalizado a partir de uma cópia pirata e copiada em cada birosca do Rio de Janeiro. O que está no camelô, na rua, nas casas, nas locadoras do morro e na televisão colocada no botequim não é o trabalho pronto de Padilha e de sua equipe: isso é um problema maior. Mas uma das coisas surpreendentes dessa história é como o realizador, na matéria Gato Por Lebre, publicada no O Globo, erra o alvo e acaba por se colocar ao lado dos discursos mais retrógrados, justamente esses que desejam estancar a livre circulação do conhecimento, da criação e do saber.

“Nos crimes contra a propriedade intelectual está se roubando também o investimento que foi feito na educação de quem estudou para produzir bens desse tipo.”, escreveu o diretor. Não, meu caro, apenas está se tornando propriedade de todos o que o capital tenta tornar propriedade só de alguns. A nossa educação é um trabalho de séculos: coletivo, múltiplo, polifônico. Se um dia nossos pais tiveram dinheiro para nos dar boas escolas, nossos filmes, artes, ensaios e trabalhos são formas de tornar esse nosso pequeno mundo privado um espaço comum. A noção de propriedade sobre a qual se baseiam os argumentos de Padilha é aquela da era industrial e, se ainda não foi destruída pelos juristas e governos, está sendo cotidianamente ultrapassada por desejos e gestos muito mais democráticos. Trata-se de uma noção de propriedade que não autoriza excluir o que foi produzido por toda sociedade: a cultura, o cinema, a educação, o Bope, a violência, a favela, etc. Este “direito de acesso” deve se impor ao “direito de excluir” a um bem imaterial.

A mercadoria material cedeu lugar à experiência, o luxo se tornou patético. O turismo e os carros “para aventura” são objetos de desejo do capitalismo. Não que esse consumo de cultura e “experiência” seja hegemônico: 80% da população mundial troca seu trabalho pela sobrevivência básica. Mas o desejo por outra coisa caminha junto. A cultura, das mais diversas formas, tornou-se o bem mais desejado.

Seria o sucesso de Tropa de Elite uma prova de que os bens materiais de seus espectadores estão resolvidos? Não creio, não há um que se apresente depois do outro. O desejo ao acesso é anterior e paralelo à invenção de uma sociedade de abundância e de necessidades básicas saciadas. Em um país em que o acesso à internet ainda é um privilégio (aprox. 20% da população, sendo que apenas metade tem acesso em casa) e a banda larga conta apenas com seis milhões de assinaturas, a cópia de CDs e DVDs é uma forma distorcida de uma grande parte da população ter acesso ao mundo conectado.

Uma outra noção de propriedade irá inviabilizar uma produção como Tropa de Elite?

Não sei se inviabiliza, mas este tipo de trabalho só pode ser pensado no interior das transformações do capitalismo e das artes que dependem de reprodução técnica. Esta nova realidade não é um caso de polícia e sim uma transformação dos paradigmas de acesso e compartilhamento da cultura e da informação, um novo e instável modelo tecno-social. O caso Tropa de Elite reflete uma crise definitiva de um tipo de capitalismo que não nos interessa.

Tropa de Elite é baseado na experiência de profissionais do Bope. Esta experiência é pessoal e social, passa pelo fato de serem funcionários públicos e atuarem no Rio de Janeiro, em lugares públicos e conhecidos e com as pessoas da cidade. Trata-se de uma obra de ficção, claro, mas absolutamente enraizado em uma experiência coletiva. O filme se funda na experiência das pessoas que estão vendo o filme, que moram no Rio e que, de alguma maneira, participam daquela história. Isso é parte importante do sucesso do filme. A indústria cultural se organiza em torno de experiências compartilhadas e transforma em mercadoria o que é coletivo. Assim foi durante esse século. O que o caso de Tropa de Elite deixa também explicito é a dificuldade de esta mesma indústria limitar o acesso ao que pertence a todos em sua origem.

Quando o casal que não pode pagar para ir ao cinema consegue ver um filme brasileiro, fala e discute no pé do morro, no trem e na sala de aula… que inveja desse sucesso, meu caro Padilha!

Ninguém pegou o filme teu e disse: olha o filme que eu fiz. Não, as pessoas estão vendo e querem ver Tropa de Elite. A tarefa dos produtores agora é acabar o filme, abrir uma barraquinha no centro da cidade e trocar cada cópia pirata por uma cópia original ou por uma entrada para o cinema. Talvez a Petrobras ajude nesta nova forma de distribuição.

A multidão merece!

Setembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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