Tropa de Elite 2,
de José Padilha (Brasil, 2010)
por Fernando Veríssimo
Um
filme brasileiro
Dizer que a continuação de Tropa
de Elite é um dos maiores fenômenos que o cinema
brasileiro já produziu em sua história não
é um exagero. Basta recorrer aos números, que serão
saudados por toda a imprensa, especializada ou não, nas
próximas semanas, para se constatar isso - e ganha um doce
quem encontrar uma reportagem que não utilize a palavra
"recorde" em algum lugar. Mas, sem querer desmerecer
os resultados do filme no mercado, a força desse novo
episódio da cruzada do capitão Nascimento contra
o crime organizado ultrapassa e muito suas conquistas econômicas.
O fenômeno é, antes de tudo, cultural. Ora, de todos
os fatores que contribuem para o sucesso do filme de José
Padilha - e eles são muitos -, há um que paira sobre
os outros, tão acima que quase passa sem ser notado. Em
determinado momento da exibição, uma cartela surge
na tela com os dizeres: "dias de hoje", ou algo para
esse efeito. E a partir daí, acompanhamos o desenrolar
da trama com a sensação de que estamos assistindo
a uma cobertura de eventos em tempo real, no calor dos acontecimentos.
Não é uma operação sutil - nada é
sutil no universo de Tropa de Elite -, mas o efeito que
a entrada dessa cartela provoca na percepção do
público, talvez de forma quase subliminar, é marcante.
É antes de tudo a realização de uma promessa,
um pacto que o candidato a blockbuster firma com o espectador
no ato da venda do ingresso e que tão raramente é
cumprido - a era dos blockbusters é marcada por
promessas falsas e pela força do marketing, antes de tudo,
e encontros felizes como o de Tropa 2 com o público
são raríssimos. No caso, o que se espera de Tropa
de Elite 2 é uma narrativa que nos faça mergulhar
na realidade por trás das manchetes de jornal, com o poder
de retórica e sedução que só o cinema
tem. Não as manchetes do ano passado, da década
passada, mas as manchetes dos "dias de hoje". E essa
expectativa o filme cumpre com dignidade, seguindo a fórmula
do primeiro e ampliando seu escopo para encompassar o tema do
qual todos adoram falar mal no Brasil, especialmente em período
eleitoral: a política. O choque de atualidade que Tropa
2 propõe não pode ser menosprezado, assim como
não se deve minimizar os possíveis e prováveis
efeitos sobre a produção nacional como um todo nos
anos vindouros. Até mesmo porque o cinema brasileiro, essa
instituição, não pode se dar ao luxo de aplicar
seu histórico duplipensar todas as vezes que se depara
com um filme como esse, tratando-lhe como exceção
e celebrando suas conquistas como se elas pertencessem ao conjunto
da produção. Há lições a se
extrair das sessões lotadas e dos aplausos que encerram
todas elas, e não seria sensato ignorar tais lições
- especialmente a mais simples e essencial: filmar os "dias
de hoje" é um excelente negócio.
Mas
é claro que tais lições nunca devem ser tomadas
ao pé da letra, e é preciso compreender que o fenômeno
Tropa de Elite ultrapassa o sentido de urgência
que ilumina os dois filmes. Pois o elemento central, a conquista
principal dos filmes é a combinação feliz
de talentos que gerou a figura do capitão (agora tenente-coronel
e subsecretário de inteligência) Beto Nascimento,
um personagem maior até que os próprios filmes.
Imbuído de um senso de justiça inabalável
e demonstrando nessa continuação uma capacidade
de adaptação invejável, Nascimento encarna
o herói de uma verdadeira legião de brasileiros
indignados com a violência dos morros, a corrupção
das forças policiais e os desvios da classe política.
Mas Nascimento é muito mais que um mero depositário
de moralidade (muitas vezes duvidosa): ele é também
um sujeito que carrega consigo alguns dos mais intrigantes paradoxos
brasileiros dos "dias de hoje" e sempre.
Ao contrário do primeiro filme, que ficava em cima do muro
em relação aos métodos e ideologias do protagonista
e extraía dessa insegurança sua energia primal e
seu discurso confuso, a adesão ao ponto de vista de Nascimento
é absoluta em Tropa de Elite 2. As questões
são totalmente internalizadas pelo herói, que trocou
a farda por um terno, de modo que o problema da segurança
pública no Rio de Janeiro se revela um melodrama burguês
nesse momento delicado de Nascimento, com direito a triângulo
amoroso, disputas familiares e criança convalescendo em
hospital. Até uma inesperada aliança estratégica
firmada com antigos opositores (a antiga contenda se revela uma
mera questão de método, mais que tudo), aliança
esta que leva ao desmantelamento de uma organização
criminosa que estende seus tentáculos até o alto
escalão do poder público, surge como uma solução
caseira para um problema doméstico.
A interpretação de Wagner Moura, quase sempre irrepreensível,
por vezes denuncia o peso dessa escolha ao recorrer a um estoque
de expressões e sentimentos que ocasionalmente atingem
uma nota em falso - como, por exemplo, na cena em que Nascimento
encontra Matias (André Ramiro) na prisão. Mas esses
pequenos deslizes não tiram o brilho da criação
do ator, que carrega boa parte do elenco nas costas e só
é
ofuscado pela caracterização excepcional de Milhem
Cortaz - que, como alívio cômico, engole o comediante
André Mattos, além de ficar com os melhores bordões
da continuação. E afinal, mais ou menos sensível,
Moura faz crer, sempre que está em cena, que a luta de
Nascimento contra o "sistema" vai além da mais
pura ingenuidade - um traço que seria imperdoável
para alguém em sua posição. No final do filme,
é sua voz em off que promete um acerto de contas
como nunca antes houve na história desse país -
e, ouvindo o cara, não sou eu quem vai duvidar disso.
Como Nascimento é o termômetro dos dois filmes, seu
caráter mais introspectivo em Tropa de Elite 2
deixa muito clara a opção da sequência por
uma narrativa que privilegia o raciocínio em detrimento
da força bruta. Mal comparando, Tropa 2 está
para o primeiro filme como O Cavaleiro das Trevas está
para Batman Begins: nas sagas desses dois heróis
tumultuados, anecessidade de compreender o mundo à sua
volta prevalece sobre o desejo de agir por impulso ou condicionamento.É
a partir do entendimento de que não é um fuzil ou
um maluco mascarado a mais que vão fazer a diferença
nesse universo de muitas dúvidas e poucas certezas que
nossos heróis traçam suas novas estratégias,
reveem suas posições, qualificam suas agendas. E
se para o homem-morcego a perspectiva de viver na ilegalidade
é o preço a se pagar para ser "o herói
que Gotham merece", o sobrevoo da câmera de Padilha
sobre Brasília não deixa dúvidas sobre o
futuro da guerra de Nascimento - um futuro talvez ainda mais ingrato
que o do cavaleiro das trevas, pelo menos no que se refere a índices
de popularidade.
É
admirável o modo corajoso e arriscado com que a transição
do primeiro para o segundo Tropa de Elite implica o abandono
de fórmulas que mal tiveram a chance de se cristalizar.
Com Nosso Lar, por exemplo, o cinema brasileiro de gênero
(o espírita, no caso) pareceu saltar vinte anos em dois
- levando em conta que a última empreitada no gênero,
Bezerra de Menezes, foi um fenômeno muito mais localizado
(e excetuando Chico Xavier, que é um produto de
grife). Com Tropa 2, a situação se repete:
é como se toda uma janela de oportunidades de ficções
policiais se fechasse para abrir espaço a um novo conceito.
Não que o elemento de exploitation, central para
o sucesso do primeiro filme, não esteja presente: temos
um formidável massacre em Bangu 1, magnificamente filmado;
caveirões entrando na favela e caveirinhas de microondas;
tortura com saco plástico. Mas o principal fator de entretenimento
da continuação é a descrição
detalhada, ainda que excessivamente caricatural e esquemática,
dos processos de formação de grupos que disputam
o poder e da guerra pela sua manutenção.
Ainda assim, a impressão que se tem é que os realizadores
de Tropa 2 tinham plena consciência de que não
jogavam para perder - e vale voltar rapidamente aos números,
que definitivamente hão de comprovar. Ao acionar um esquema
de distribuição independente inédito para
um filme desse porte, e ao arriscar um programa de lançamento
comercial mais radical que o de muitos blockbusters norte-americanos,
Tropa 2 parece fazer do risco e da audácia elementos
centrais de uma estratégia a se perseguir. Mas ao jogar
"pra galera", combinando denúncia requentada,
exploração crassa da violência urbana e faro
fino para o que comove e diverte as massas, o filme reverte sua
posição, revelando um calculismo de mercado que
impede um voo artístico pleno e satisfatório. Não
que isso incomode a maioria, muito pelo contrário. Fato
é que, em meio a essas contradições (e há
muitas e muitas outras que o filme incorpora e traz à tona),
Tropa 2 promove um espetáculo como nenhum outro,
notável em sua perspicácia e capacidade de realização.
É um filme que nasce incontornável e sobre o qual
o cinema brasileiro há de se debruçar por muito
tempo. E se, no fim, um herói mascarado se revelou o herói
que Gotham merece e não o que ela deseja, com Tropa
2 a questão é mais simples: ele é o
filme que o Brasil quer neste momento. Se o merece ou não,
é outra história.
Outubro de 2010
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