in loco - especial É Tudo Verdade
Triste Trópico, de Arthur Omar (Brasil, 1974)
por Julio Bezerra (colaboração especial
para a Cinética)
Documentário
do avesso
Arthur Omar tem o documentário como
campo de referência e problematização. O título de um de seus escritos, que se
tornou um clássico, já trazia sinteticamente a idéia de todo um projeto: “O antidocumentário,
provisoriamente”. Omar empreendeu um sistemático e variado questionamento do ilusionismo
e do realismo no documentário. Triste Trópico, um de seus primeiros trabalhos,
é um filme que se situa no cruzamento do cinema experimental com o cinema documentário,
articulando a desconstrução da linguagem do documentário, sua relação com o objeto
e com o espectador. Triste Trópico é um filme-colagem
que faz alusão em seu título ao livro de Claude Lévi-Strauss (Tristes Trópicos).
Neste filme somos apresentados vida do Dr. Arthur. Um personagem brasileiro cuja
história evoca uma aventura modernista em viagem transatlântica e o movimento
do litoral ao sertão. Uma narração em off clássica dá conta, passo a passo, dos
episódios da vida do médico que estuda na Europa, ligando-se a grupos de vanguarda,
como o surrealismo, volta ao Brasil para percorrer a Zona da Mata, e acaba se
transformando em uma figura de liderança de um movimento messiânico, em uma espécie
de mestre de magia e ciência. A narração de Othon Bastos
assume a posição de uma voz onisciente, acima das imagens, e nos conta a história
deste estranho personagem, nascido em 1882 e morto em 1946. Aos poucos, essa mesma
voz nos surpreende com um conteúdo absurdo: a história vai e volta no tempo, e
o personagem se metamorfoseia incessantemente. Mas o vocabulário e o tom da narração
persistem. Esta insistência está inclusive dentro do espaço fílmico. Em determinado
momento, a voz de Bastos pergunta ao diretor: "... você quer que eu continue
naquele mesmo tom? Então vamos lá". Mais adiante, Omar indica o tom apropriado:
"... a enumeração das relíquias tem que ser um negócio totalmente sem ênfase". Na
verdade, a faixa sonora é terreno para grandes experimentações. Além da narração,
as músicas e todo o tipo de ruído experimentam novas relações com as imagens,
e a montagem não se decide por nenhuma possibilidade mais específica. A idéia
de uma associação livre entre o som e a imagem é radical. Em determinado momento,
três informações diferentes são combinadas: a narração nos fala de uma viagem
do Dr. Arthur, enquanto vemos um carro moderno estacionado e um outro plano de
um homem de óculos; ao fundo, na faixa sonora, o canto de um índio. A estrutura
narrativa não tem compromisso com uma história e se desdobra em fragmentos e justaposições
polifônicas, em um fluxo que quebra a montagem audiovisual. Triste
Trópico se desenvolve em acúmulo frenético. Omar opera em um turbilhão sensorial
ao mesmo tempo em que narra alguma coisa. Aliás, este talvez seja um mal-entendido
em relação a Triste Trópico. Não se trata de um filme não-narrativo. Apesar
de não ter uma história em um sentido mais tradicional de encadeamentos causais
de eventos, este documentário é extremamente narrativo. Tudo tem voz e fala. Cada
pessoa, objeto, elemento, situação, etc., tudo se apresenta como uma nova possibilidade.
Neste sentido, a montagem é certamente o principal elemento da composição e confere
o caráter histriônico deste filme. A narração nunca encontra suas imagens, apesar
de prometê-las. Algumas imagens até trazem referências de época e parecem sugerir
a existência do tal Dr.Arthur, mas estas primeiras impressões se revelam nada
mais do que ilusões. Triste Trópico frustra incessantemente as expectativas
do espectador e exige uma relação ativa de decifração. Omar
não está interessado em extrair conhecimentos ou mensagens da história de Dr.
Arthur. Triste Trópico ressalta a todo instante a incontornável dificuldade
de se estabelecer uma comunicação real entre a história e o tempo deste personagem
e as nossas histórias e o tempo de hoje. Na verdade, o tema do filme não é exatamente
a vida do Dr. Arthur. O objeto enfocado é a própria estrutura do filme documental.
É em função da desarticulação dessa forma de ordenação que o filme é pensado.
Trata-se de um (anti)documentário sobre a ilusão de conhecimento que o documentário
está sempre a nos prometer. Triste Trópico é um
filme profundamente alinhado a um cinema de ruptura. Mas Omar problematiza o documentário
não em relação à ficção, mas em relação ao próprio documentário. Triste Trópico
serve para nos lembrar de que crenças têm sua origem em valores compartilhados
e que estes assumem a forma de convenções. Estas últimas incluem maneiras convencionais
de representar o mundo no documentário (narradores sérios, prova visual, estilos
observacionais de câmera, filmagens externas, etc.) e também maneiras de ver e
pensar e explicar o mundo. Omar subverte as convenções e busca re-hierarquizar
os elementos do documentário em uma nova combinação. Precisamos
entender que a tradição do documentário vai, em sua trajetória histórica, constituir
para si mesmo uma rede de práticas, premissas, e valores, que envolve o gênero
em uma esfera de autoridade para explicar o mundo histórico. A história dos usos
das imagens documentais revela e constitui um papel de registro do mundo e o estabelecimento
de um determinado pacto narrativo que orienta a leitura de documentários enquanto
índices da realidade. Estas convenções e as formulações que compõem o documentário
tradicional em uma composição determinada historicamente influenciam fortemente
a definição do filme documentário e orientam a expectativa da audiência. O
que Triste Trópico vem nos dizer é que este forma é hegemônica, mas não
unívoca. Assim, este (anti)documentário assimila os mais diversos recursos retóricos
desenvolvidos ao longo da história do documentário e produz uma inflexão deles
sobre si mesmos, problematizando suas limitações. A busca pelo novo se resolve
em um mecanismo de constante ruptura com a estrutura do cinema documentário tradicional.
No entanto, Triste Trópico não é negação do documentário, mas a expansão
de seu vernáculo. Omar empreende um diálogo em bases polifônicas com uma determinada
formação discursiva, não exatamente para rejeitá-la, mas para problematizá-la
e apresentar a ela múltiplas possibilidades. Abril
de 2008
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